A emoção em forma de disciplina

 

Importância de lidar e reconhecer as próprias emoções é um dos focos da disciplina Medicina Baseada em Narrativas Médicas, ofertada a estudantes do curso de Medicina do Centro Universitário Municipal de Franca (Uni-FACEF), em São Paulo

 

Nayane Taniguchi – Ascom Fiocruz Brasília

 

“(…) Antes de tudo isso, a medicina sou eu… eu sou a medicina. A medicina é uma escolha de vida, uma escolha minha. A minha vivência, minha relação com ela, que vai definir que tipo de médico serei. Preciso me adaptar aos desafios que ela me mandar. Para isso, preciso estar preparado como pessoa, ser humano”. O trecho acima poderia ser de uma narrativa literária sobre o exercício da profissão, mas é o relato de um estudante do terceiro semestre do curso de Medicina do Centro Universitário Municipal de Franca (Uni-FACEF), em São Paulo, após participar da disciplina Medicina Baseada em Narrativas na Educação Médica, ministrada pela doutora em Promoção de Saúde pela Universidade de Franca-SP Raquel Rangel, docente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional do Uni-FACEF.

Este é apenas um entre dezenas de relatos coletados pela docente, que há três anos ministra a disciplina no Centro Universitário. A transformação dos estudantes, submetidos a uma carga exaustiva de conteúdo ao longo da graduação, é representada por suas percepções no decorrer do semestre. Antes do trecho destacado acima, o estudante sintetiza a proposta da disciplina: “Até que então entendi: o propósito, pelo menos pra mim, da disciplina, é mostrar que a medicina antes de ser biologia (anatomia, fisiologia, histologia, patologia), habilidades, Dora, SUS, IESC, PBL, biopsicossocial, etc. Antes de tudo isso, a medicina sou eu… eu sou a medicina (…)”.

 

Mas, há espaço para a emoção na relação médico paciente e na conduta deste profissional? Como estimular um olhar mais humano durante o atendimento médico? Como o olhar para o outro pode proporcionar uma reflexão sobre si mesmo? De que forma a Literatura pode contribuir para a formação de médicos no país? Foi na junção entre Literatura e Medicina que a docente encontrou formas de provocar, nos estudantes, o autoconhecimento e reflexões sobre a conduta profissional. Nas aulas, eles são convidados a conhecer diferentes narrativas, em textos, vídeos e músicas, que têm médicos e/ou pacientes como protagonistas. E, a partir daí, fazer uma autorreflexão sobre o próprio processo de formação.

 

Os resultados surpreenderam, inclusive, a docente, que também é mestre em Medicina e Saúde pela Universidade Federal da Bahia. “A emoção que os estudantes expõem é consequência do que a disciplina provoca. O médico se vê apartado do paciente, e tem a crença de que ele não pode se emocionar por viver situações dramáticas diversas. Na disciplina, discutimos exatamente o contrário. Existem formas de não se fazer transferência”, diz. Para a doutora, ter uma transição entre os extremos de razão e emoção é importante. “A relação entre as pessoas deve ser horizontal. Não existe um detentor e nem uma autoridade absoluta nas relações. É preciso respeitar a autonomia”, defende.

 

Há três anos, a disciplina faz parte da grade curricular obrigatória do curso, com cerca de 150 estudantes desde o início. Ao todo, são quarenta horas, dividida em duas horas semanais, ofertadas no terceiro semestre do curso de Medicina do Uni-FACEF. Esta é uma das soluções que será apresentada na Semana Uma Só Saúde, durante a Feira de Soluções para a Saúde – Saúde Única para Territórios Saudáveis e Sustentáveis, que será realizada de hoje, 22 de abril, ao dia 25, próxima quinta-feira, em Bento Gonçalves (RS).

 

Em um curso no qual os estudantes possuem uma carga horária exaustiva de estudo, a docente os convida para conhecer romances e filmes com a temática médica. “Percebemos que eles estavam cansados, angustiados. As histórias também são angustiantes, são dramas relacionados às doenças ou sobre a vida dos médicos, nas quais eles passam a ter identificação. Essas experiências mostram a importância de lidar e reconhecer as próprias emoções”, afirma.

 

Nas aulas, os estudantes trabalham em grupos, momento em que fazem as leituras, compartilham trechos das histórias com os demais e discutem sobre as narrativas e as emoções sentidas. “Quando pergunto sobre as emoções, a tendência é falar das personagens protagonistas, mas o que buscamos é saber quais são as emoções sentidas pelos alunos. No início, eles apresentam um repertório limitado de emoções. Com o tempo, passam a compreender que a disciplina é um momento para eles mesmos, para sentir e não para racionalizar”, explica Raquel. Entre algumas questões colocadas que direcionam as discussões, estão: Quem é responsável pela vida de uma paciente em uma cirurgia? O que vocês sentem ao perder um paciente em uma cirurgia?

 

De acordo com a docente, o objetivo é fazer com que os estudantes percebam a humanidade do médico, e ajudá-los a compreender que eles lidam com pessoas quando lidam com pacientes. “Antes de tudo são pessoas que têm toda uma complexidade de vida”, diz. Raquel explica que as narrativas ajudam a entender outras formas de relato diferentes dos registros médicos, e a conhecer a medicina também por meio de narrativas, através da vivência e dos sentimentos.

 

Em uma das aulas, a docente conta que apresentou aos estudantes relatos de casos reais de mães e pais que perderam seus filhos, antes ou durante o parto, e também registros médicos colocados no prontuário, evidenciando a diferença das narrativas. “Apresentamos o mesmo caso pela ótica do registro médico e pela ótica dos pais, e eles conseguem perceber as diferenças. Durante as aulas, os estudantes aprendem a fazer a gestão da própria emoção, em um momento em que eles também sofrem com uma rotina desgastante. Embora essas situações os façam sentir emoções difíceis, são possibilidades de trocarem entre eles e de colocarem as emoções para fora. Considero isso um ponto positivo, uma válvula de escape”.

 

Vivência, sentimentos e habilidades

Raquel explica que, inicialmente, a disciplina tinha como objetivo aumentar o repertório cultural dos alunos, utilizando romances, além de buscar o desenvolvimento da empatia a partir da vivência da dor do outro pelo texto narrativo e pela literatura. Além da gestão da própria emoção, Raquel conta que os estudantes revelam ter resgatado o gosto pela leitura e pela escrita. “Eles lembram que gostam de ler e escrever e percebem que podem usar os dons artísticos, como a pintura e a poesia, ao longo do curso. Com isso, desenvolvem habilidades para a vida”, relata.

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