Opas publica recomendações para reduzir desigualdades

Quais são os fatores estruturais que geram as desigualdades em saúde na região das Américas? Como governos devem agir para superar essas desigualdades? Para responder a essas perguntas a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas/OMS) reuniu doze especialistas para compor a Comissão para Equidade e Desigualdades em Saúde nas Américas. Entre eles, o ex-presidente da Fiocruz e atual coordenador do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz), Paulo Buss.

A Comissão debruçou-se durante dois anos sobre o tema e apresentou, na última semana (24/9), o sumário executivo do informe Sociedades justas, equidade em saúde, e vidas dignas, com doze recomendações para os governos da região abordarem o tema (listadas na imagem).

O informe descarta uma visão simplista de que o acesso à boa saúde é só uma questão de renda. Um mínimo de investimento é necessário, afirmam os especialistas, no entanto existem múltiplos fatores, como gênero, raça, fatores ambientais, que também interferem na saúde e na desigualdade de acesso. “Há exceções dramáticas à ideia de que a boa saúde é simplesmente uma questão de ficar mais rico”, disse o presidente da comissão, Michael Marmot, do Instituto de Equidade em Saúde da University College London, ao apresentar o resumo executivo aos ministros da Saúde no 56º Comitê Executivo da Opas.

“A desigualdade domina as Américas: a desigualdade socioeconômica, mas também as desigualdades entre povos indígenas e não-indígenas; entre pessoas de ascendência africana e de origem europeia; entre os sexos; entre pessoas com deficiência e sem deficiência; entre pessoas de diferentes orientações sexuais e entre migrantes e não migrantes. Demasiada desigualdade prejudica a coesão social, leva à distribuição injusta das oportunidades de vida e às desigualdades de saúde”, afirma a Comissão em seu resumo executivo.

Confira abaixo artigo escrito pelo líder da iniciativa para o The Lancet sobre o trabalho e as conclusões da Comissão.

 

Sociedades justas, equidade em saúde, e vidas dignas: a comissão da Opas para equidade

Os EUA são o país mais rico das Américas e seus moradores gozam de boa saúde: a expectativa de vida feminina é de 81 anos e a masculina de 76 anos. O Haiti é o país mais pobre das Américas; seus moradores sofrem com problemas de saúde: a expectativa de vida feminina é de 66 anos e a masculina de 61 anos. A renda nacional bruta (RNB) dos EUA é de cerca de 59 mil dólares por pessoa. No Haiti, é pouco mais de 1800 dólares por pessoa, isto quando se ajusta o poder de compra.

Os EUA e o Haiti estão de acordo com o padrão de países ricos com pessoas saudáveis e países pobres com pessoas não saudáveis. Exceto que não é tão simples. Uma exceção vem da comparação entre países. Na Costa Rica e em Cuba, as expectativas de vida são de um ano a mais que nos EUA. Mas o seu PIB é uma fração do nível dos EUA: 16 mil dólares por pessoa na Costa Rica e da mesma ordem em Cuba. Depois, há países como Argentina e Chile, com níveis semelhantes de renda nacional, mas a expectativa de vida do Chile é 2 anos mais longa para as mulheres e 4 anos mais longa para os homens do que a da Argentina.

Os EUA podem ser o país mais rico das Américas, mas há pelo menos oito países com expectativa de vida maior. O Canadá, por exemplo, com renda nacional por pessoa um quarto menor do que os EUA, tem uma expectativa de vida feminina de 3 anos a mais e masculina de 4 anos mais longa do que nos EUA. Há muitos caminhos para a boa saúde de um país e alta renda nacional é apenas um deles.

Outra exceção vem de olhar para as desigualdades em saúde dentro de países, que podem rivalizar com as desigualdades entre os países. Na cidade norte-americana de Baltimore, os homens das comunidades mais pobres têm uma expectativa de vida próxima à do Haiti, enquanto os homens dos bairros mais ricos têm uma expectativa de vida melhor que a dos canadenses. Tais desigualdades dentro dos países são generalizadas. No Chile, um homem com baixa escolaridade pode esperar viver 11 anos menos do que um homem com educação universitária.

É para abordar desigualdades como essas que a Comissão da Organização Pan-Americana da Saúde para Equidade e Desigualdades em Saúde nas Américas foi criada pela diretora da Opas, Carissa Etienne. O ponto de partida da Comissão de Equidade é que a saúde é uma meta que vale a pena para os indivíduos e para as comunidades. Certamente, há boas razões instrumentais para melhorar a saúde: a boa saúde pode ser um caminho para que os indivíduos desfrutem de vidas produtivas e florescentes; uma população mais saudável pode fazer sentido econômico para um país. Mas essa não é nossa preocupação central. A saúde é mais do que um meio para algum outro fim. O bem-estar humano é um fim em si mesmo. Uma melhor saúde e maior equidade em saúde virão quando as chances de vida e o potencial humano estiverem liberados para criar as condições para que todas as pessoas alcancem seu mais alto padrão de saúde atingível e para que tenham uma vida digna. Em 24 de setembro de 2018, o Sumário Executivo do relatório da Comissão de Equidade da Opas foi publicado e apresentado a uma reunião dos órgãos diretivos da Opas, seu Conselho Diretor, em Washington, EUA.

As evidências reunidas pela Comissão de Equidade da Opas mostram que muitas doenças são socialmente determinadas. As desigualdades em saúde surgem devido às condições em que as pessoas nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem. Da mesma forma, as desigualdades em saúde dentro dos países são principalmente o resultado dos determinantes sociais da saúde. Como mostra a Comissão de Igualdade da Opas, iniciativas para educação e inclusão social, por exemplo, terão benefícios para a saúde e para a sociedade como um todo.

O efeito dos determinantes sociais da saúde é visto no início da vida. Na maioria dos países das Américas, a chance de uma criança morrer antes dos 5 anos de idade está ligada à renda dos pais – quanto menor a renda, maior a mortalidade. Na Guatemala, por exemplo, em 2014, a taxa de mortalidade de menores de 5 anos foi de 56 por mil nascidos vivos no quintil mais pobre das famílias e 20 por mil nascidos vivos no quintil mais rico. Na Colômbia, em contraposição, a mortalidade de crianças com menos de cinco anos no quintil mais rico foi de sete por mil nascidos vivos em 2015 – uma taxa que mostra o que deve ser alcançável. Nas Américas, o desenvolvimento ao longo da vida das crianças e seus resultados em educação, renda, saúde e bem-estar estão intimamente ligados com as situações de seus pais.

A boa saúde requer não só o acesso aos cuidados de saúde, mas também a ação sobre os determinantes sociais da saúde. De fato, a relação entre as características da sociedade e a saúde é tão próxima que, como a Comissão de Igualdade da Opas argumenta, saúde e equidade em saúde são importantes indicadores do progresso social.

Além do desafio de abordar as desigualdades sociais e econômicas, o trabalho da Comissão de Equidade da Opas identificou as mudanças climáticas, as ameaças ambientais, a relação com a terra e o contínuo impacto do colonialismo, do racismo e da história da escravidão como fatores importantes que retardam o progresso em direção à meta das pessoas da região levarem uma vida digna e desfrutarem do mais alto padrão de saúde possível.

É um momento importante para publicar este relatório. A desigualdade domina as Américas. Desigualdade em excesso prejudica a coesão social, leva à distribuição injusta das oportunidades de vida e às desigualdades na saúde. Ainda assim, ao mesmo tempo, a região tem estado na vanguarda do reconhecimento do direito humano ao mais alto padrão atingível de saúde, com a maioria dos países assinando protocolos internacionais sobre direitos econômicos, sociais e culturais. A implementação das recomendações desses acordos é o desafio para os políticos, profissionais, sociedade civil e líderes comunitários.

A estrutura conceitual da Comissão de Equidade da Opas resume nossa abordagem para analisar as evidências e formular recomendações. O quadro se baseia na Comissão sobre os Determinantes Sociais da Saúde, mas vai além, com maior ênfase no colonialismo, no racismo estrutural e na importância das relações com a terra; o meio ambiente e as mudanças climáticas; os direitos humanos; e as desigualdades de acordo com gênero, etnia, orientação sexual, estágio de vida e incapacidade. Um enfoque particular está na desvantagem em saúde dos povos indígenas e afrodescendentes. A Comissão de Equidade da Opas reconhece as inter-relações entre esses determinantes sociais da saúde. Ser pobre, indígena, mulher e migrante, por exemplo, pode trazer maior desvantagem para a saúde do que qualquer uma delas sozinha. Colocamos ênfase em levar uma vida digna como um resultado desejado alinhado com maior equidade em saúde. O monitoramento e a avaliação da equidade em saúde e dos determinantes sociais da saúde devem ser componentes importantes da ação.

As recomendações de ação da Comissão de Igualdade da Opas seguem esse quadro conceitual. Embora endossemos uma reorientação dos serviços de saúde para a prevenção, reconhecemos que incentivar as pessoas que vivem em condições difíceis a simplesmente adotar comportamentos saudáveis pode ser inútil ou pior. A redução das iniquidades em saúde continuará elusiva, a menos que os fatores estruturais sejam abordados. Uma criança das Primeiras Nações do Canadá [indígena] não tem risco aumentado de suicídio porque seus pais não deram atenção aos conselhos sobre a criação dos filhos, mas porque as consequências do colonialismo e das desigualdades sociais perduram. As desvantagens não estão apenas associadas à baixa posição socioeconômica, mas quando os povos indígenas no Canadá são privados de sua relação tradicional com a terra, isto também é um determinante social da saúde – um fator estrutural de desigualdades. Da mesma forma, na Colômbia, a alta mortalidade por violência entre os jovens afrodescendentes remonta, em parte, aos persistentes efeitos do colonialismo e do racismo.

Fatores estruturais – por exemplo, grandes e crescentes desigualdades econômicas, privilégios do setor privado em detrimento do reconhecimento da importância de um florescente setor público, e ignorar o meio ambiente – devem ser todos enfrentados na busca da equidade em saúde. Nossas recomendações não partem do pressuposto de que abordar esses fatores estruturais é fácil. Mas as iniquidades em saúde fornecem razões poderosas para isso.

Os governos podem prover recursos para lidar com as desigualdades no desenvolvimento da primeira infância, na educação e treinamento e nos benefícios de desemprego. O bem-estar pode sustentar a renda, assim como os arranjos adequados para aposentadoria. A sociedade civil também é vital no fornecimento de programas e na mudança da opinião pública. A violência de gênero afeta a vida de muitas mulheres nas Américas. A ação em muitos dos determinantes sociais da saúde ajudará a combater essa violência; mas também levará a mudanças de atitude. De fato, assegurar os direitos das mulheres de levar uma vida plena e digna, livre de discriminação – com educação, segurança e melhor saúde para elas e suas comunidades – é um exemplo de um caminho claro a seguir. Os mecanismos de direitos humanos são instrumentos importantes para alcançar a mudança. No centro do propósito da Comissão está assegurar o direito de todas as pessoas nas Américas de levar uma vida com dignidade e desfrutar do mais alto padrão de saúde possível. Apelamos a todos os governos a agir.

Michael Marmot é presidente da Comissão da Opas sobre Equidade e Desigualdades na Saúde nas Américas.

Os outros membros da Comissão da Opas sobre Equidade e Desigualdades na Saúde nas Américas são: Paulo Buss, Victor Abramovich, Mabel Bianco, Cindy Blackstock, Jo Ivey Boufford, Nila Heredia, Pastor Murillo, Tracy Robinson, Maria Paola Romo, David Satcher e Cesar Victora.

 

Leave a Reply

73 − = 71