NOTA TÉCNICA – ANÁLISE DOS POTENCIAIS IMPACTOS À SAÚDE E AOS DIREITOS HUMANOS DIANTE DO EDITAL DE CONCESSÃO DA PRESTAÇÃO REGIONALIZADA DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE FORNECIMENTO DE ÁGUA E ESGOTAMENTO SANITÁRIO E DOS SERVIÇOS COMPLEMENTARES DOS MUNICÍPIOS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO PARA O SETOR PRIVADO

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APRESENTAÇÃO

A presente nota técnica apresenta, de forma preliminar, uma Análise dos Potenciais Impactos à Saúde e aos Direitos Humanos diante do Edital de Concessão da Prestação Regionalizada dos Serviços Públicos de Fornecimento de Água e Esgotamento Sanitário e dos Serviços Complementares dos Municípios do Estado do Rio de Janeiro para o Setor Privado.

O caráter preliminar desse documento deve-se à necessidade de protocolar as considerações ora apresentadas para a terceira audiência pública virtual a ser realizada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) em 04/08/2020.

O objetivo do saneamento básico é a saúde pública, com a melhoria das condições de vida e situação de saúde dos territórios. De acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil, em seus artigos 196 e 200, têm-se:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:

(…).

II – executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador;

(…).

IV – participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico;

(…).

VI – fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano;

(…).

VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.

Os rumos, ritmos e, principalmente, as lacunas identificados nos documentos de referência do Edital de Concessão dos Serviços de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário do Estado do Rio de Janeiro indicam a necessidade da ampliação do prazo da consulta, possibilitando o envolvimento das instituições de pesquisa e acadêmicas, bem como a população do Estado do Rio de Janeiro.

Caso isso não ocorra, existe o risco de se aprovar um edital de concessão dos serviços públicos de saneamento com indefinições institucionais, jurídicas, técnicas, econômicas e financeiras, com potenciais de impactos socioambientais, em especial à saúde pública e aos direitos humanos, ao longo dos 35 anos previstos de concessão ao setor privado.

SUMÁRIO

  1.  No Contexto da Pandemia de Covid-19
  2. Direitos Humanos ao Abastecimento da Água e Esgotamento Sanitário
  3. Priorização dos Critérios de Saúde Pública
  4. Favelas, Aglomerados Subnormais (Áreas irregulares) e Aglomerados Rurais
  5. Saúde do Trabalhador
  6. Estruturas Atípicas ao Sistema Separador Absoluto
  7. Controle Social
  8. Política Tarifária, Tarifa Social e Subsídio Cruzado
  9. Fiscalização de Obras
  10. Operação e Manutenção
  11. Compatibilização entre Plano Metropolitano, Planos Municipais de Saneamento Básico e Planos Diretores Municipais de Água e Esgoto
  12. Melhorias Sanitárias Domiciliares e Tecnologias Sociais
  13. Sistema de Informação
  14. Universalização e Integralidade dos Componentes do Saneamento Básico
  15. Ações Estruturantes
  16. Cumprimento da Norma de Potabilidade de Água
  17. Regulação e Fiscalização ao Cumprimento do Edital e Contratos
  18. Proteção dos Mananciais
  19. Indicadores Econômicos
  20. Reestatização do Saneamento
  21. Considerações Finais

1. No Contexto da Pandemia de Covid-19

A pandemia de Covid-19 e a consequente situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, declarada no Brasil pelo Ministério da Saúde, em 3 de fevereiro de 2020, comprometem o processo de participação do Edital de Concessão da Prestação Regionalizada dos Serviços Públicos de Fornecimento de Água e Esgotamento Sanitário e dos Serviços Complementares dos Municípios do Estado do Rio de Janeiro para o setor privado.

Audiências públicas virtuais não viabilizam o direito à ampla participação devido às dificuldades de acesso aos meios digitais. Não obstante, ao longo das duas audiências públicas realizadas pelo BNDES, críticas foram feitas ao processo, bem como aos produtos que constituem o Edital, por apresentarem diversas lacunas que dificultam a análise do mérito. Tal fato foi ratificado pela análise preliminar das questões abordadas nesta nota técnica.

Os questionamentos advêm de diversas entidades, representações do setor de saneamento, instituições de pesquisa, academia, grupos de pesquisa, fóruns e observatórios, a exemplo do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), que congrega diversos especialistas, pesquisadores, gestores, movimentos sindicais e sociais.

As críticas feitas nas audiências públicas virtuais, seja em depoimentos ou em documentos textuais, podem resultar em uma alteração substantiva do Edital, o que poderá se traduzir em sua não apreciação em tempo hábil, incorrendo em uma inconsistência e insegurança jurídica do processo de transferência de concessão da Cedae.

2. Direitos Humanos ao Abastecimento da Água e Esgotamento Sanitário

 A Resolução A/RES/64/292, da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 28 de julho de 2010, com endosso do Brasil e que trata dos direitos à água e ao esgotamento sanitário, dispõe que o acesso adequado à água limpa e segura e ao esgotamento sanitário é um direito humano, essencial para o pleno gozo da vida e de outros direitos humanos. O posicionamento da ONU apoiado por 122 nações, com 41 abstenções e nenhum voto contrário, com forte suporte da diplomacia brasileira, impulsiona uma estratégia da universalização do acesso à água em quantidade e qualidade adequadas e ao esgotamento sanitário de forma segura, sem qualquer tipo de discriminação, em convergência com o cumprimento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), subscritos pelo Brasil.

Nessa perspectiva, qualquer formulação de políticas públicas para saneamento no estado do Rio de Janeiro deve priorizar a universalização do acesso para as habitações urbanas e rurais (populações do campo, da floresta e das águas), além de considerar todas as esferas da vida, sejam as populações em situação de rua, migrantes, espaços públicos, pontos de ônibus e demais transportes, escolas, estabelecimentos de saúde, creches, asilos, presídios, locais de trabalho, entre outros.

O acesso aos serviços de saneamento, considerando as obras de implantação, bem como os serviços de operação e de manutenção devem considerar as ações estruturais (obras) e estruturantes (gestão, participação social e educação) que promovam a acessibilidade qualiquantitativa, geográfica, econômica, financeira, informacional, educacional, de raça e cor da pele, geracional, jurídica, de gênero, pop. urbana, periurbana e rural, de forma a reduzir as iniquidades sociais em saneamento e saúde.

No Caderno de Encargos, quando são abordadas as favelas e aglomerados subnormais, denominadas inadequadamente como “áreas irregulares”, tem-se: “A Concessionária alinhará com o Estado e a Agência Reguladora, quais serão as áreas irregulares que ele deve investir, devendo ser priorizadas as áreas que atendam aos requisitos (i) de urbanização ou de planejamento de urbanização pelo poder público e (ii) de maiores condições de segurança”. Tal formulação confronta os princípios dos direitos humanos, pois, em lugar de as definições serem norteadas pelo critério de saúde pública, priorizando as áreas mais insalubres, a modelagem adota o critério de rentabilidade e de segurança.

As áreas não urbanizadas e sofridas pelas condições de insegurança são áreas com as quais o Estado possui uma dívida histórica de políticas públicas e exatamente por isso devem ser priorizadas, de forma que não se corra o risco de se tornarem territórios de exceção de direitos. Os critérios supracitados são discriminatórios e inaceitavelmente contribuem para ampliar as desigualdades sociais. Essa questão também está relacionada aos itens #3 e #4 desta nota técnica. Recomendamos a sua supressão do Caderno de Encargos.     

As áreas constituídas por favelas e bairros populares que possuem uma infraestrutura sanitária inadequada de abastecimento de água e esgotamento sanitário, territórios submetidos a graves inundações com sistema de drenagem inadequado, que deveriam, a partir de critério epidemiológico, serem priorizadas ao terem programas sucessivamente prorrogados ao longo de vários anos, aparentemente não são devidamente considerados no presente Edital, o que configuraria um caso de injustiça ambiental e de perpetuação das iniquidades em saneamento e saúde. Nesse sentido, também deve ser garantido e ampliado o acesso à água e ao esgotamento sanitário nas áreas rurais, inclusive naquelas que possuem sistema de abastecimento de água (SAA) e sistema de esgotamento sanitário (SES) instalados ou sob operação da CEDAE.  

Conforme preconizado pela Constituição Federal, em seu art. 196, a saúde é direito de todos e dever do Estado. Os determinantes socioambientais da saúde das populações do campo, da floresta e das águas, dentre os quais, o direito humano à moradia, à terra, à água, ao trabalho e ao território, devem ser protegidos pelo Estado. O Caderno de Encargos da modelagem do BNDES estabelece que: “compete à Concessionária do Bloco 1 executar as obras relativas à barragem de Guapiaçu, no período máximo de 5 anos. Para tanto, caberá ao Estado declarar as áreas ao redor da barragem com de utilidade pública. A indenização relativa à desapropriação dessa área ficará a cargo da Concessionária”. O edital não faz referência à tramitação, no Grupo de Atuação Especializada em Meio Ambiente (GAEMA) do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), de procedimento de acompanhamento do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado com a Petrobrás, no âmbito do licenciamento do COMPERJ, cabendo destacar que, dentre as cláusulas pactuadas, há aquela que impõe ao Estado a obrigação de elaborar o Plano Estadual de Segurança Hídrica (PESH) e, bem assim, de somente implantar a denominada barragem do Guapiaçu após a conclusão do referido Plano, cujo conteúdo mínimo, em relação ao leste fluminense (Sistema Imunana), deve atender integralmente a Informação Técnica do GATE (IT nº 239/2017) que traz inúmeras exigências à nível de avaliação de impacto. Para além da necessidade de estar prevista no Plano, e do aval do MPRJ, a referida barragem também estará condicionada a apresentação e aprovação de EIA/RIMA.1

Por que o Caderno de Encargos não aborda essa tramitação pendente? Qual seria a solução alternativa? Deverão ser garantidos a priori todos os direitos dos agricultores familiares que residem no território.

1 Fonte: Disponível:http://www.mprj.mp.br/home/-/detalhe-noticia/visualizar/87501. Acesso em 31 jul. 2020.

3. Priorização dos Critérios de Saúde Pública

O Caderno de Encargos estabelece como objetivo: “Vale destacar que o presente ANEXO deve ser entendido como uma coletânea de orientações gerais, que têm por objetivo padronizar e uniformizar práticas e condutas no âmbito da operação de sistemas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, de maneira a alcançar as metas de atendimento e de performance estabelecidas bem como as boas práticas na área da engenharia, administração, comercial, financeira e socioambiental.” Constata-se que a saúde não é explicitada como um dos objetivos.   

O Caderno de Encargos, documento que apresenta a descrição das atividades operacionais a serem cumpridas pelas concessionárias na operação das diversas unidades integrantes dos SAA e SES possui 8 (oito) ocorrências da palavra saúde, sendo 7 (sete) como integrantes a denominação de Ministério da Saúde e somente uma vez relacionada a desinfecção. Isso indica que a concepção do projeto está desalinhada da saúde pública enquanto objetivo estratégico dos SAA e SES.

O documento intitulado – Estudos Técnicos e Planejamento Regionalizado Metropolitano do Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário Municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro Atualmente Atendidos pela Cedae (Plano Metropolitano da RMRJ) aborda o tema saúde no item 3.7, de forma reduzida e insuficiente. Basicamente apresenta um gráfico – Proporção de internações hospitalares (SUS) por grupos de causas na Região Metropolitana (2011) – tendo como fonte o Ministério da Saúde/SE/DATASUS – Sistema de Informações Hospitalares do SUS – SIH / SUS. Seguida da descrição: “Segundo a Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro (2011), as internações por doenças do aparelho circulatório e por doenças infecciosas e parasitárias (DIP) alcançaram proporções bem semelhantes na região. No entanto, há cinco municípios onde o número de internações por DIP superou o de doenças do aparelho circulatório, chegando a ser a segunda maior causa de internação, são eles: Belford Roxo (20,21%), Queimados (17,39%), Mesquita (15,66%), São João de Meriti (13,10%) e Nova Iguaçu (12,98%). O aumento da proporção de internações por DIP em 2011 deveu-se principalmente às internações por dengue. De acordo com o PNUD (2013), a mortalidade infantil (mortalidade de crianças com menos de um ano de idade) na RM reduziu de 23,7 óbitos por mil nascidos vivos no ano de 2000 para 13,7 óbitos por mil nascidos vivos em 2010. A esperança de vida ao nascer apresentou um aumento de 3,8 anos na última década, passando de 71,5 anos no ano de 2000 para 75,3 anos em 2010.”.

Essa abordagem insuficiente do campo da saúde pública se expande pelos respectivos Apêndices com os estudos dos municípios não permitindo relacionar as intervenções de saneamento com a saúde pública. Os documentos constituintes do Edital não permitem avaliar a distribuição espaço-temporal dos SAA e do SES uma vez que basicamente as metas são estabelecidas em percentuais de população a ser atendida por município. Isso não permite uma avaliação dos critérios de prioridade de avanço das obras que serão estabelecidos. A situação é mais imprevisível quando se fala das áreas irregulares conforme abordados no item #4 desta nota.

Considerando os critérios epidemiológicos, deveriam ser priorizadas em termos de SAA e SES as áreas com maiores índices de morbi-mortalidade, decorrentes das doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado (DRSAI), as populações com maior vulnerabilidade socioambiental e em condições socioeconômicas e sanitárias mais precárias.    

A concepção básica de esgotamento sanitário diferente do sistema separador absoluto, a exemplo dos coletores de tempo seco e das galerias de cintura previstos em diversos municípios com extensas populações de baixa renda e favelas podem trazer riscos sanitários e ambientais sem os devidos estudos de concepção e memorial justificativo. O item #6, que aborda as estruturas atípicas ao separador absoluto ratifica que o critério da saúde pública não foi determinante nesta modelagem do BNDES.    

O critério de saúde pública não se evidencia no Edital em análise, considerando a aparente ausência de força vinculante das previsões de investimento em áreas irregulares, na medida em que não há ao menos um prévio planejamento macro, priorizando, por exemplo, as áreas em que já houve investimentos por parte do município ou em que há projetos em andamento pela Cedae, como a conclusão da implantação dos coletores tronco de esgoto sanitário da Estação de Tratamento de Esgoto da Alegria, previstos à época do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara. As áreas a serem atendidas pelo Coletor Tronco Maguinhos (que compreendem os bairros: Bonsucesso, Benfica, Jacaré, Jacarezinho, Engenho Novo, Lins de Vasconcelos, Méier, Riachuelo, Rocha, Mangueira, Sampaio, além dos Complexos de Manguinhos e Complexo do Jacaré) e pelo Coletor Tronco Faria-Timbó (que compreendem os bairros: Ramos, Bonsucesso, Olaria, Del Castilho, Inhaúma, Tomáz Coelho, Eng. da Rainha, Higienópolis, Eng. Leal, Cavalcanti, Eng. de Dentro, Pilares, Maria da Graça, Encantado, Todos os Santos, Piedade, Cascadura, Madureira, Oswaldo Cruz, Marechal Hermes e Complexo Habitacional do Alemão)2 não servirem para fins das metas de atendimento, nem aparentemente estão incluídas nos índices de desempenho ou outro mecanismo contratual para avaliação da eficiência e qualidade dos serviços prestados.

A previsão de priorização dos investimentos na bacia hidrográfica do rio Guandu não contempla o município de Nova Iguaçu, que parcialmente contribui para a bacia do rio Ipiranga, também afluente ao rio Guandu que desemboca próximo do ponto de captação da Estação de Tratamento de Água do Guandu. Nada é falado sobre ampliação do Sistema Guandu. Isso revela a falta de prioridade dos critérios de engenharia e de saúde pública tanto no atendimento de territórios vulnerabilizados pelas condições socioeconômicas e pela ausência de esgotamento sanitário adequado, bem como pela manutenção de fatores de risco no principal manancial da Região Metropolitana do Rio de Janeiro que abastece mais de 9 milhões de habitantes. Tal fato foi evidenciado no início de 2020, com a presença de geosmina e de 2-Metil-Isoborneol (MIB), na água fornecida pelo Sistema Guandu, que gerou uma grave crise hídrica no Rio de Janeiro. Diversas famílias, inclusive de baixa renda passaram a comprar água envasada ao longo do período de alterações qualitativas da água de consumo humano.  

O esgotamento sanitário adequado pelo sistema separador absoluto das bacias hidrográficas contribuintes às coleções hídricas, em especial dos mananciais, rios, sistemas lagunares, orla marítima e as Baias de Guanabara e de Sepetiba, devem ser previstos no Edital com metas, índices e também com indicadores de despoluição de suas águas de acordo com enquadramento de suas classes em função dos usos das águas previstos. Isso na perspectiva do direito a territórios saudáveis e sustentáveis, ao trabalho e geração de renda decorrente das atividades pesqueira, turismo e demais atividades relacionadas aos corpos hídricos, bem como ao direito à habitação saudável nas áreas de influência dessas águas.

A insuficiência dos critérios de saúde na modelagem proposta é verificada na concepção do projeto, nos critérios de priorização, na concepção básica de projetos de engenharia, nos projetos socioambientais e na insuficiência da participação e controle social, bem como nas informações insuficientes dos estudos. As lacunas e inconsistências abordadas no item #4, a seguir, evidenciam a prioridade do critério da rentabilidade em detrimento da atrofia dos critérios de saúde pública.

Mesmo ao considerar que o plano de ação será elaborado posteriormente, é necessário minimamente haver um termo de referência, uma previsão de investimentos, o estabelecimento de áreas e ações prioritárias, subsidiado por critérios de saúde pública, caso contrário a modelagem é aprovada e essas ressalvas colocadas em segundo plano, sujeita a insegurança jurídica no processo.

2Fonte: Site oficial da Cedae.Disponível em: https://www.cedae.com.br/Portals/0/SitePDBG_julho.pdf. Acesso em 26 julho 2020.     

4. Favelas, Aglomerados Subnormais (Áreas irregulares) e Aglomerados Rurais   

A falta da universalização dos serviços públicos de saneamento está ligada as desigualdades sociais das cidades brasileiras e no estado do Rio de Janeiro não é diferente. Reduzir as desigualdades em saneamento e saúde e o racismo estrutural marcado pelo acesso diferenciado entre moradores das favelas, dos aglomerados subnormais, dos bairros populares e da população rural é um grande desafio a ser conquistado.

A inclusão das áreas irregulares e favelas do município do Rio de Janeiro nos contratos a serem celebrados é um avanço em relação a outros contratos de concessão de serviços de saneamento que, a exemplo do contrato com a Zona Oeste Mais Saneamento – empresa responsável pelos serviços de esgotamento sanitário na zona Oeste do município do Rio de Janeiro – que exclui essas áreas da prestação dos serviços. Entretanto, há lacunas e inconsistências quando se trata da descrição do que deverá ser executado pelas concessionárias vencedoras da licitação neste caso.

Em primeiro lugar, nos documentos do Edital sob consulta pública há descrição da evolução temporal das metas de atendimento global dos municípios, mas não há o devido detalhamento de como ocorrerão as metas de universalização nas denominadas áreas irregulares (favelas e aglomerados subnormais). Além disso, na ausência de um diagnóstico mais detalhado dos serviços, não há garantia de que os investimentos descritos por blocos serão suficientes para alcançar a universalização do saneamento nas áreas irregulares em cada bloco de concessão.

Em segundo lugar, o Caderno de Encargos parece transferir a responsabilidade do planejamento dos titulares (municípios e, no caso da RMRJ, municípios e estado do Rio de Janeiro, conforme entendimento do STF) para a própria concessionária, que deverá alinhar

[…] com o ESTADO e a AGÊNCIA REGULADORA, quais serão as áreas irregulares que ele deve investir […]. Após esse alinhamento, a CONCESSIONÁRIA elaborará um PLANO DE AÇÃO, informando como pretende avançar com os investimentos nas regiões definidas em comum acordo, priorizando, sempre que possível, investimentos no sistema de esgotamento sanitário, podendo ser implantadas soluções alternativas ao sistema coletor absoluto, nos locais onde a implantação do sistema coletor absoluto for tecnicamente inviável. (CADERNO DE ENCARGOS)

Ora, segundo a legislação brasileira, a responsabilidade pelo planejamento urbano municipal e, por conseguinte, das áreas prioritárias para investimentos em serviços de saneamento é de responsabilidade do município – o qual deve, inclusive, elaborar os planos municipais de saneamento, sendo esta uma atividade indelegável.

O marco regulatório do saneamento básico no Brasil (recentemente modificado) estabelece que: “o titular dos serviços formulará a respectiva política pública de saneamento básico, devendo, para tanto, […] elaborar os planos de saneamento básico [e] estabelecer metas e indicadores de desempenho e mecanismos de aferição de resultados, a serem obrigatoriamente observados na execução dos serviços prestados de forma direta ou por concessão” (inciso I do artigo 9º da Lei 11.445); (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020). Ademais, reitera que “os planos de saneamento básico serão aprovados por atos dos titulares”, devendo ser “compatíveis com os planos das bacias hidrográficas e com planos diretores dos Municípios em que estiverem inseridos, ou com os planos de desenvolvimento urbano integrado das unidades regionais por eles abrangidas” (Art. 19 da Lei 11.445/2007). Portanto, em nenhum momento prevê a transferência da atividade de planejamento dos serviços, fundamental para a vida urbana e para a redução das desigualdades, para ente privado. Também não cabe ao Estado do Rio de Janeiro, por meio do processo de consulta pública e dos documentos disponibilizados para tal, definir qual a prioridade (esgotamento sanitário) e qual o tipo de sistema que será implantado (separador absoluto ou sistemas atípicos ao separador absoluto).

Finalmente, os documentos da Consulta Pública fazem referência apenas às áreas irregulares do município do Rio de Janeiro, deixando de lado as áreas irregulares existentes nos outros municípios definidos nos blocos I a IV. Sabendo da existência de extensas áreas irregulares habitadas na Baixada Fluminense, nos municípios de São Gonçalo e Itaboraí, sem mencionar os demais municípios do interior do estado que também compõem os blocos objeto da concessão, resta o questionamento de como está prevista a inclusão de um considerável contingente populacional como detentores dos direitos à água e ao esgotamento sanitário. É urgente a definição, por exemplo, do responsável pelos investimentos nessas áreas e de metas de curto, médio e longo prazo para atendimento dessa população.

Desta forma, ao não estabelecer as metas de ampliação das redes e prestação dos serviços de água e esgoto nessas áreas, o projeto coloca em risco a saúde de uma parcela significativa da população. Portanto, faz-se necessário garantir que os municípios mantenham suas titularidades constitucionais dos serviços de saneamento, estabelecendo critérios para a distribuição dos investimentos nas diversas áreas da cidade.

No Caderno de Encargos, tem-se no item 3.4 Áreas irregulares no município do Rio de Janeiro “Nas áreas irregulares do município do Rio de Janeiro se prevê a ampliação do sistema de abastecimento de água e de esgotamento sanitário e respectiva operação e manutenção pela CONCESSIONÁRIA. No entanto, os investimentos a serem realizados nestas áreas não serão quantificados para fins de cálculo das metas de universalização descritas no ANEXO III – INDICADORES DE DESEMPENHO E METAS DE ATENDIMENTO. A obrigação da CONCESSIONÁRIA estará adstrita à realização de um determinado volume de investimentos ao longo dos primeiros 20 (vinte) anos da celebração do CONTRATO.”.

 Os investimentos de coletores de tempo seco nas áreas irregulares na medida em que não possuem estudo de concepção que justifique essa como concepção básica, ou seja, a melhor alternativa tecnológica, ainda não são apresentados os detalhamentos das tecnologias concebidas o que não permite uma análise crítica da proposta. Tais estudos são considerados imperativos uma vez que não possuem normalização pela ABNT.  

Na minuta Contrato de Concessão preconiza no item “34.4.26 Ausência de implantação de asfaltamento ou rede de drenagem na ÁREA DE CONCESSÃO que impeça a CONCESSIONÁRIA de realizar os investimentos para alcançar as METAS DE ATENDIMENTO”. Isso poderá ensejar a revisão extraordinária do equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Esse item poderá abrir uma série de justificativas e precedentes para aumento da tarifa ou do adiamento nas metas de atendimento em especial para os bairros populares, favelas e ocupações subnormais.

No Caderno de Encargos a Concessão do Estado é dividida em 4 Blocos apresentados nas tabelas 1 a 4 do referido caderno nas páginas 7 a 9. Embora essas tabelas não apresentarem referências aos respectivos números de economias urbanas em cada bloco, elas apresentam o ano em que a concessão deverá atingir as metas pelos respectivos municípios e esses indicadores são definidos no Anexo III (Indicadores de Desempenho), na tabela 1 (Página 6). Entretanto esse monitoramento por meio dos indicadores (IAA e IAE) não serão adotados para áreas irregulares no município do Rio de Janeiro. Para essas áreas foi definido um montante de investimento fixo, sem levar em conta o número de economias contempladas ao longo do período de concessão.

A não utilização dos indicadores de forma igualitária para a todas as economias da área de concessão está em desacordo com as metas de desenvolvimento sustentável quanto a equidade, assim como a equidade de acesso definidos nos termos dos Direitos Humanos ao Abastecimento da Água e Esgotamento Sanitário.

Os investimentos para as áreas irregulares do Município do Rio de Janeiro, definidos no Caderno de Encargos seriam suficientes para atender aos critérios dos indicadores das metas de concessão (IAA e IAE)?

Como monitorar o avanço nos IAA e IAE das populações que vivem em comunidades localizadas em áreas de favelas, aglomerados subnormais e áreas rurais?

Para o caso das populações que vivem em comunidades localizadas em áreas de favelas e aglomerados subnormais nos outros Municípios dos Blocos I a IV, quais seriam os critérios para investimento e monitoramento dos IAA e IAE dessas populações?

Sobre os aglomerados rurais, em muitos casos as populações do campo, da floresta e das águas são negligenciadas nos planos municipais de saneamento. Os documentos do Edital referem-se basicamente de áreas urbanas, não detalhando como se dará o abastecimento de água e esgotamento sanitário das áreas rurais. Vale ressaltar que a Cedae possuem SAA e SES nas áreas rurais que precisam ter a sua continuidade com operação e manutenção adequada bem como a ampliação dos seus serviços.

Como a modelagem proposta irá garantir o direito humano à água e ao esgotamento sanitário de forma a se promover a equidade em saúde das populações do campo da floresta e das águas? Quais os critérios adotados pelo Edital para a caracterização e definição da população rural? Caso essas perguntas não estejam devidamente explicitadas no Edital e demais documentos, com o estabelecimento de indicadores de desempenho e metas correm-se o risco de termos desertos sanitários nas áreas periurbanas e rurais, historicamente negligenciadas.

Em síntese, não foram encontradas garantias de que os investimentos ocorrerão nas favelas, aglomerados subnormais e para as populações rurais na documentação disponibilizada no processo de transferência de concessão conduzido pelo BNDES que afirme o objetivo estratégico da universalização do SAS e SES no Estado do Rio de Janeiro.  

5. Saúde do Trabalhador

As experiências conhecidas em processos de privatização de diferentes setores produtivos brasileiros geralmente são apresentadas à sociedade como positivas para economia, sob argumentos de que o Estado é um gestor ineficaz, as empresas são deficitárias e a privatização é benéfica por estimular a competitividade e melhorar a eficiência econômica das empresas. Essa crítica às estatais frequentemente omite informações da sociedade e busca atender interesses de corporações que disputam a concentração de riquezas, a hegemonia de setores importantes socialmente e o lucro elevado em setores estratégicos da economia nacional.

Na prática, o que se observa é um grande prejuízo à nação pela produção de resultados inapropriados à sociedade, como, por exemplo, aumento de custos de serviços e produtos, deterioração dos serviços e principalmente precarização das condições de trabalho e aumento do desemprego.

O processo de privatização, vivenciado por estes trabalhadores que mudam de vínculo, também fica demonstrado pela perda da expectativa profissional, fragilidade dos vínculos empregatícios, elevada possibilidade de perda do emprego, intensificação das jornadas de trabalho e, principalmente, o aumento na frequência de agravos à saúde destes trabalhadores. Evidenciada pelo aumento das condições de insalubridade e periculosidade devido à piora nas condições para o desenvolvimento do trabalho.

A ineficiência nos programas de prevenção ambiental e médico ocupacional se refletem na precária disponibilização de equipamentos e instrumentos adequados para proteção da saúde e da vida, refletindo inclusive no aumento do número de acidentes de trabalho e na gravidade dos mesmos.

Os trabalhadores dos serviços de saneamento devem receber os equipamentos de proteção individual (EPI) em quantidade e qualidade adequados para as atividades realizadas. A paramentação dos trabalhadores de saneamento requer áreas devidamente planejadas, inclusive para o manejo dos resíduos de EPI’s em atendimento às diretrizes de biossegurança. Os ambientes de trabalho devem atender as normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho, bem como as recomendações da OSHA e do Ministério da Saúde, se for o caso, de forma a permitir a realização das medidas de higienização dos materiais e equipamentos utilizados, assim como a higienização das mãos e todas as demais medidas necessárias aos trabalhadores como a paramentação, troca de roupas, banhos e manejo de resíduos perigosos etc. Além disso, a disponibilidade de EPI é essencial e considerando as melhores práticas de forma a proteger tanto os profissionais e impedir que eles se transformem em elos de transmissão de doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado (DRSAI) e doenças emergentes a exemplo da Covid-19. Seguindo também os preceitos para a proteção a saúde desses trabalhadores, segundo preconizado pelo do Ministério da Saúde.

O processo de capacitação de pessoal deve ser contínuo, para além de treinamentos, devendo ser contemplado temas relacionados à saúde do trabalhador, educação em saneamento e saúde. 

Assegurar aos trabalhadores que atuam diretamente na operação e manutenção do sistema de abastecimento de água a utilização adequada dos equipamentos de proteção individual (EPI). A utilização adequada de EPI é um componente de inspeção no âmbito da vigilância em saúde do trabalhador, que deve fiscalizar o cumprimento das NR-6; NR-7 e NR-9 do Ministério do Trabalho e demais obrigações legais destinadas à segurança e saúde do trabalhador. Além disso, a não utilização adequada dos EPI pode trazer riscos para a garantia da potabilidade de água em todas as suas etapas.

Diante da pandemia provocada pelo Covid-19, as recomendações mais assertivas em relação ao risco de contaminação indicam que os trabalhadores que atuam no setor de saneamento não devem abrir mão da utilização do EPI, seguindo as medidas de proteção e segurança que devem ser adotadas como padrão para essas atividades. São medidas de controle de risco para os trabalhadores e para a qualidade da água que visam à integração entre a vigilância da qualidade da água para o consumo humano com a vigilância da saúde dos trabalhadores a vigilância epidemiológica.

Outro fator preponderante que vem sendo estudado é o aumento da precarização das relações trabalhistas, sendo observada na contratação direta, diversas modalidades de subcontratação, denominadas de terceirização e quarteirização do trabalho.

As mudanças na legislação trabalhista e o consequente desmonte da rede de proteção dos trabalhadores é hoje uma questão central no debate da organização sindical, que busca agilizar medidas para impedir a precarização no trabalho, garantindo medidas como: fornecimento suficiente de equipamentos de proteção individual, estabelecimento de medidas de proteção coletiva, fim das jornadas de trabalho exaustivas, melhoria das condições ergonômicas, redução dos impactos a saúde mental pelo desgaste e insegurança com as ameaças de perda do trabalho, fortalecimento dos treinamentos e programas institucionais de capacitação e investimento na qualificação dos profissionais com exigência de capacitação técnica, orientação trabalhista e formação política dos trabalhadores.

Por fim destacar, que a privatização corrobora com importantes impactos à vida e saúde dos trabalhadores das estatais e não garante necessariamente qualidade na prestação do serviço e geração de produtos.

6. Estruturas Atípicas ao Sistema Separador Absoluto

De acordo com a norma técnica da Associação Brasileira de Normas Técnicas, a ABNT:NBR 9648/1986, tem-se “sistema de esgoto sanitário separador – conjunto de condutos, instalações e equipamentos destinados a coletar, transportar, condicionar e encaminhar somente esgoto sanitário a uma disposição final conveniente, de modo contínuo e higienicamente seguro”.

Dentre as estruturas atípicas ao sistema separador absoluto, existentes no Rio de Janeiro, que não estão cobertos pela referida norma, compreendem-se as ligações clandestina de esgoto sanitário no sistema de drenagem, a interconexão entre a rede coletora de esgoto sanitário e as galerias de águas pluviais, os coletores de tempo seco, captações de tempo seco, galerias de cintura, desvios de rios e canais e estações de tratamento nos cursos de rios.

Os principais argumentos em defesa do sistema separador absoluto foram apresentados por Saturnino de Brito, patrono da Engenharia Sanitária do Brasil, no opúsculo Saneamento de Santos, de 1898 (Obras, v.I), um divisor de águas para o desenvolvimento tecnológico da engenharia sanitária no Brasil. A partir da experiência exitosa do saneamento e urbanização de Santos, em 1910, uma área até então insalubre, marcada por doenças relacionadas ao saneamento inadequado, foi consolidada a concepção do tipo separador absoluto, considerado o mais adequado para as condições climáticas do nosso país, em especial no Estado do Rio de Janeiro, marcado por clima tropical com elevados índices de precipitação pluviométrica e, consequentemente, vazão de águas pluviais.

Mediante os inconvenientes do sistema de esgotamento sanitário do tipo sistema misto, anteriormente concebido no Brasil, que permitia a contribuição de águas pluviais dos lotes, residenciais, o Governo Federal orientou a empresa privada inglesa, “The Rio de Janeiro City Improvements Company Limited” (1862-1947), à época concessionária, a adotar o sistema separador absoluto, a partir do contrato de 1899. Saturnino de Brito, em suas Obras (v.II, 1923), expressava críticas ao sistema anterior em questão: (…) durante as chuvas (não somente as excepcionais) abrem-se as adufas e as galerias de esgotos descarregam diretamente na baía os líquidos e sólidos transportados (o defeito provem dos sistemas então universalmente adotados devendo-se normalmente recorrer à extravasão por vertedor). Esse problema ocorre hoje de forma recorrente em diversas regiões do Estado do Rio de Janeiro que adotaram estruturas de captação de tempo seco. Por isso, é necessário recorrer ao conhecimento histórico para evidenciar a recorrência dos problemas atuais por obras altamente questionáveis e impedir, no futuro, a repetição desses graves erros de projeto de engenharia.

O sistema de drenagem de águas pluviais poluído indevidamente por contribuições de esgoto sanitário e efluentes industriais é comumente chamado incorretamente de “sistema misto” ou “sistema unitário”. Entretanto, os sistemas unitários, enquanto alternativa tecnológica, são concebidos e projetados para transportarem esgoto sanitário com águas pluviais, a exemplo dos sistemas de esgotos europeus, cujas chuvas e vazões são bem distintas com relação ao Brasil. Atualmente, maiores restrições ambientais aos sistemas unitários apontam tendências de emprego do sistema separador absoluto mesmo em área de clima temperado.

Comparando a rede coletora de esgoto sanitário (RES) com as galerias de águas pluviais (GAP) verifica-se expressiva distinção entre elas devido a diferenças entre: traçado e extensão de coletores (GAP não são executadas em todas as ruas, podendo haver descontinuidade, já a RES precisa atender às habitações e terem seus esgotos conduzidos até ETE); pavimentação de ruas (GAP funcionam pior em vias públicas sem pavimentação que a RES), juntas (estanqueidade maior nas RES com juntas elásticas em relação as juntas rígidas das GAP); regimes de escoamento (continuo na RES e intermitente na GAP), tensão trativa, vazões (as vazões de GAP possuem ordem de grandeza superior em relação as RES); diâmetro das tubulações (GAP inicia com 400mm e RES com 150mm);  transporte de sedimentos (sólidos grosseiros, areais e demais sólidos sedimentáveis mais presentes na GAP), presença de gases (gás sulfídrico e outros na RES), risco sanitário (maior na RES).   

As diferenças acima descritas já sinalizam as dificuldades de se trabalhar de forma otimizada, econômica e segura com escoamento e características tão distintas. A operação atípica de transporte de esgoto sanitário nas GAP traz problemas de assoreamento, obstrução, efeito abrasivo em equipamentos, infiltração e contaminação dos meios edáficos, lençol freático e corpos hídricos, colapso devido a transbordamento de águas residuárias nas vias públicas, remanso, deterioração de estruturas de concreto por ação de gás sulfídrico etc. Não se deve, portanto, aproveitar estruturas de drenagem existentes que não foram concebidas para transporte de esgoto sanitário.

De acordo com o Caderno de Encargos, as localidades previstas para construção de coletores de tempo seco, a serem implantados nos cinco primeiros anos de concessão com adiamento do sistema separador absoluto a partir do sexto ano serão: Belford Roxo, Duque de Caxias, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Itaboraí e São Gonçalo e seus respectivos distritos. Além disso, da previsão de galeria de cintura na Baia de Guanabara.

O sistema é constituído, segundo a descrição sumária do caderno, de uma estrutura de captação (ou interceptação) de esgoto nas galerias de água pluvial e em cursos de água que recebem o esgoto in natura, seguida de gradeamento do material grosseiro e encaminhamento para a estação de tratamento de esgoto mais próxima, mediante coletores, estações elevatórias e linhas de recalque existentes ou a construir. A implantação do sistema coletor de tempo seco está prevista com a finalidade de, em curto prazo, minimizar (grifo nosso) a poluição da Baía da Guanabara e dos seus corpos afluentes, do rio Guandu, que é o principal manancial da RMRJ (exceto Nova Iguaçu) e melhorar a balneabilidade das praias e lagoas.

Caberá à Concessionária, nos termos do Caderno de Encargos, definir os locais mais adequados para a construção dos coletores de tempo seco. Isso implica dizer que o critério de rentabilidade será o determinante, em detrimento de outros critérios, como a gestão dos riscos à saúde pública, por exemplo. A Concessionária poderá realizar revisões no cronograma e a sua verificação caberá à Agenersa, a qual poderá se valer de serviços do certificador independente. Não estão sinalizados eventuais critérios e limites de prorrogação gerando risco da constituição de territórios de exceção.   

A Fundação Rio-Águas, da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, em debates sobre o processo de concessão dos SAA e SES, publicados na página oficial da fundação, tem feito críticas contundentes à modelagem do BNDES, com destaque para os coletores de tempo seco, comprovando que esses sistemas, que foram implantados, por exemplo, na Zona Sul, não foram eficazes e trouxeram diversos problemas operacionais e riscos à saúde1. Em outra apresentação, as captações de tempo seco de Botafogo e do Flamengo são exemplificadas como obras ineficazes1.

Na Região dos Lagos do Rio de Janeiro, em que a concessão dos SAA e SES é do setor privado, as áreas contribuintes aos sistemas lagunares e à orla marítima sofreram intervenções de estruturas atípicas ao separador absoluto, a exemplo de captações de tempo seco e de tratamento em canais, implantados a partir de 2002, em caráter emergencial, o que demonstra sua ineficiência em resolver definitivamente o controle da poluição e em promover a proteção ambiental das riquezas naturais, mantendo-se riscos à saúde pública.

São diversas as não conformidades e críticas por parte da população da região dos municípios de Cabo Frio e Armação dos Búzios sobre os efeitos dos coletores de tempo seco (CTS) conforme constatado na experiência de organização comunitária e controle social na política pública de saneamento básico da Associação Raízes e mediante palestras e visitas de campo realizadas por um dos autores dessa nota técnica, especialista da Fiocruz, em diversas localidades da Região dos Lagos.

Diversas ações, vistorias técnicas e termos de ajustamento de condutas foram realizados pelo Ministério Público Federal e pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro na região sobre o tema. De modo geral, as principais reclamações giram em torno da ausência de rede do tipo sistema separador absoluto, da utilização da técnica de tomada de tempo seco no município, do teor do contrato e das suas revisões, bem como dos seus trâmites, da ineficiência e falha dos serviços de esgoto e dos impactos socioambientais.

Em Armação de Búzios, houve despejo de esgoto na praia da Marina em março de 2017, na Praia de Tucuns em março de 2020 e na praia de Maguinhos em maio de 2020 pelas CTS. Em Cabo Frio, existe constante pressão da sociedade civil, ONGs e entidades com relação ao saneamento adequado para a proteção da Laguna de Araruama. Em 2018, a empresa concessionária chegou a ser multada pela Agenersa por negligência à situação ambiental da laguna, contudo a concessionária recorreu. Em marco de 2019, houve despejo de esgoto na da Praia do Siqueira. As praias dos Anjos e Prainha, do município de Arraial do Cabo, foram intensamente contaminadas por esgotos depois de fortes chuvas ocorridas em janeiro de 2019, resultando em ação civil pública do MPF.

A ineficiência do sistema de captação em tempo seco para os municípios da região, com impactos socioambientais, na medida em que, em períodos de chuvas não há suporte para a vazão do volume das águas, ocasionam o despejo do esgoto misturado com águas pluviais sem tratamento, nos corpos hídricos. Os eventos recorrentes são evidências das limitações das estruturas atípicas ao sistema separador. Consequentemente as concessionárias privadas estão sofrendo ações nos sentido da implantação de sistema separador absoluto.

Diante das chuvas fortes no estado do Rio de Janeiro, que nos últimos anos têm aumentando de recorrência e intensidade, com inundações configurando desastres. As áreas de favelas situadas nos morros com alta declividade sofrem pela maior energia das águas de escoamento superficial e carreamento de sólidos e sedimentos. Nas áreas de baixada, em especial nas áreas pulmão, a intensidade elevada de chuva ocasiona inundações e comprometimento da drenagem pluvial, havendo retenção de águas residuárias contaminadas por agentes patogênicos (vírus, bactérias, protozoários, ovos de helmintos, fungos etc), junto às habitações. Essa drenagem inadequada contribui para o surgimento de outras doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado, como as arboviroses e as doenças emergentes. Essas condições, que já são um grande desafio para o estado do Rio de Janeiro, com a ampliação dos coletores de tempo seco, correm o risco de se agravar por efeito cumulativo.

O ilustre engenheiro sanitarista, Azevedo Netto (1918-1991), defensor do sistema separador, contestava, já em 1983, o insistente argumento da época de que não havia condições para se controlar devidamente e na prática esse sistema, por falta ou deficiência de fiscalização. Ele se remetia ao fato de que muitas cidades brasileiras, durante muito tempo, exerceram controle adequado de seus sistemas, e que aquela que não tivesse condições para exercê-lo, provavelmente não teria também condições para fiscalizar o recebimento de despejos industriais nocivos, bem como operar satisfatoriamente suas estações de tratamento.

O sistema separador, concepção amplamente adotada no país, está regulamentado em diversas legislações. Portanto, a eliminação das interconexões é requisito ao atendimento das legislações ambientais e urbanísticas. O que se observa é uma deficitária fiscalização dos órgãos competentes quanto ao cumprimento destes procedimentos, o que compromete seriamente a adequação da coleta, tratamento e disposição final do esgoto sanitário, bem como das águas pluviais. É imperativa a correção das deficiências do sistema de esgoto do Rio de Janeiro, além de seu aprimoramento mediante ampliações, de modo que ele passe a funcionar de fato como sistema separador absoluto, não devendo haver espaço para “soluções eternamente provisórias” que o descaracterizam, bem como suas inquestionáveis vantagens no Brasil. Azevedo Netto observa em seu artigo intitulado – Contribuições Indevidas para as Redes de Esgoto – que “não se pode deixar de reconhecer a conveniência de ampliar e melhorar, nos serviços bem conduzidos, as atividades de vigilância e de correção de abusos. Sem essa vigilância o sistema separador absoluto perde muito sua razão de existir”4.    

Para que o componente do saneamento básico sistema de esgotamento sanitário tenha operação e manutenção adequadas é necessário que o Edital prescreva os critérios e procedimentos de controle operacional, a eliminação de estruturas atípicas ao separador absoluto, a implantação de programas “caça-esgoto”, planos de amostragem para o controle da poluição e recuperação dos sistemas de drenagem pluvial e consequentemente das coleções hídricas para todo o Estado do Rio de Janeiro, sem território de exceção.       

Pelos critérios técnicos, sanitários e ambientais, as estruturas atípicas ao sistema separador absoluto, dentre eles os coletores de tempo seco, não são tecnologias recomendadas para as áreas previstas no Edital, em decorrência dos riscos à saúde pública, riscos de poluição das coleções hídricas, as dificuldades e custos operacionais elevados e alta depreciação. O art.274, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro prescreve “que as empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos deverão atender aos dispositivos de proteção ambiental em vigor” e no art.277, “os lançamentos finais dos sistemas públicos e particulares de coleta de esgotos sanitários deverão ser precedidos, no mínimo, de tratamento primário completo, na forma da lei.”. Os documentos constituintes do edital inexplicavelmente não fazem referência a esta regulamentação estadual.

A exceção não pode se tornar regra. Estruturas atípicas ao separador absoluto, somente poderiam ser concebidas, enquanto excepcionalidade, em condições específicas e de forma restrita, com o devido estudo de concepção (estudo de arranjos das diferentes partes de um sistema, organizadas de modo a formarem um todo integrado e que devem ser qualitativa e quantitativamente comparáveis entre si para a escolha da concepção básica) de sistema de esgotamento sanitário que apresentasse as alternativas tecnológicas subsidiadas pelo estudo de viabilidade técnico-econômico, incorporando análises de risco sanitário e ambiental, e que deva estar fundamentado em memoriais descritivo e justificativo. O Edital, além de não cumprir esses requisitos para tomada de decisão, nem mesmo apresenta o detalhamento das estruturas que comporiam este tipo de sistema, seja nas favelas, nos bairros populares da Baixada Fluminense ou nas demais regiões.

O Caderno de Encargos cita, para efeito de normalizar e orientar a consecução dos projetos de engenharia dos SAA e SES, 44 normas técnicas da ABNT. De forma equivocada e inaceitável, o documento omite nessa listagem, a ABNT:NBR 9648/1986 – Estudo de concepção de sistemas de esgoto sanitário – que já define no seu objetivo, o sistema tipo separador enquanto sistema oficial a ser adotado no país: “esta norma fixa as condições exigíveis no estudo de concepção de sistemas de esgoto sanitário do tipo separador, com amplitude suficiente para permitir o desenvolvimento do projeto de todas ou qualquer das partes que o constituem, observada a regulamentação específica das entidades responsáveis pelo planejamento e desenvolvimento do sistema de esgoto sanitário”.

Pelo exposto, o índice de atendimento urbano de esgoto não pode considerar a implantação de CTS em seu cálculo, por ser considerada uma alternativa “provisória” pelo Edital, e ser uma estrutura atípica ao separador absoluto. Vale ressaltar, conforme apresentado no item #13, que o índice de desempenho coletor de tempo seco não tem paralelo no Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), uma vez que considera adequado apenas o atendimento por rede coletora de esgoto sanitário. A própria cobrança de tarifa de esgoto sanitário somente deveria ser feita para sistema separador absoluto completo, incluindo o tratamento do esgoto, com eficiência de tratamento comprovada.  

Em síntese, os problemas e desafios do sistema de esgotamento sanitário não podem ser somados com a enxurrada dos problemas da drenagem pluvial de chuvas fortes. Para além do fato dos estudos de engenharia sanitária ambiental constituintes do Edital e da modelagem estarem insuficientes e inconsistentes devido ao acúmulo de diversas lacunas e informações imprescindíveis para minimamente permitir a análise dos métodos executivos e operacionais, o detalhamento das estruturas e a previsão orçamentária, a concepção básica deveria nortear os projetos executivos de engenharia de ampliação e melhorias do esgotamento sanitário nos territórios pelo sistema separador absoluto.

3Fonte: Disponível em: https://www.rio.rj.gov.br/web/rio-aguas. Acessado em 31 jul 2020.

4Fonte: Disponível em: http://revistadae.com.br/artigos/artigo_edicao_120_n_313.pdf. Acessado em 31 jul 2020.

7. Controle Social

A Lei 14.026/2020 define o controle social como atividade essencial ao saneamento básico. Apesar de enormes carências, os Conselhos Municipais de Meio Ambiente passaram a exercer esse controle social, porque os quadros técnicos das prefeituras nos municípios do interior serem de número deficitário. O que se propõe é que o controle social deva ser amplo, de forma a incluir instituições e grupos que sejam representativos, estruturados e defendam interesses públicos legítimos. Nesse tipo de controle social a sociedade consolida seu papel participativo.

Um exemplo de instituição que deve fazer parte desse controle social ampliado nas ações de saneamento no Estado do Rio de Janeiro, são os comitês de bacia hidrográfica, que zelam pela qualidade das águas, possuindo abrangência e legitimidade nas 9 (nove) regiões hidrográficas do estado, com representantes dos três segmentos: poder público, usuários de água bruta e sociedade civil organizada.

Quanto à publicidade dos serviços prestados, os comitês têm um Plano de Bacia em que expõem suas diretrizes e metas na gestão dos recursos hídricos da sua área de atuação, possuindo sítios eletrônicos, planos de comunicação e espaço nas mídias sociais, que contribuem para que a sociedade tenha acesso amplo às informações.

Além disso, os comitês, por força de lei, exercem o papel de primeira instância para dirimir conflitos de uso das águas, prevenindo impactos às águas de nascentes e/ou aos mananciais de abastecimento, priorizando a qualidade dessas águas para propiciar os usos múltiplos. Os comitês fazem o monitoramento dos contratos de concessão, atuando em harmonia com os Ministérios Públicos, caso haja necessidade de resolver conflitos jurídicos por violação de cláusulas contratuais, metas e objetivos, convocando tanto o titular do serviço (município) quanto o contratado (concessionária pública ou privada)5.

É imprescindível ter uma regulação forte do estado, e para isso o controle social sobre a agência reguladora, com prestação de contas, publicização das informações, com envolvimento do poder público municipal, da Cedae, das instituições acadêmicas e de pesquisa e da sociedade civil organizada, com o fortalecimento dos comitês de bacias, de modo a interferir nas decisões, planejar, acompanhar, cobrar, monitorar e responsabilizar, ou seja, promover a mobilização social, participação social, controle social das políticas de saneamento no estado e a democracia.

É necessário que conste nesta modelagem e respectivos documentos a consecução de Conferências Estaduais de Saneamento Básico, a cada três anos, sob responsabilidade da Agenersa, com recursos financeiros necessários previstos neste Edital que possa garantir o direito da participação social e de receber formalmente as contribuições vindas da população, sociedade civil organizada e da academia.

5Fonte: Nota técnica da ENSP/Fiocruz. Disponível em http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/49587?fbclid=IwAR1siBb0YRFooISeFySv5wkNNkTjAQDgiFDC9QkaA5hhFddau-jstz0Et_8. Acesso em 29 julho 2020

8. Política Tarifária, Tarifa Social e Subsídio Cruzado

8.1. Política Tarifária e Gestão do Risco do Contrato

Segundo o discurso oficial, proferido nas Audiências Públicas pelos representantes do Governo do Estado do Rio de Janeiro e do BNDES, responsável pela modelagem do projeto de concessão, afirma “Projeto não considera aumento real da tarifa atual da CEDAE” (Documento Q&A Perguntas e Respostas). Depreende-se desta afirmação que não haverá aumento acima da inflação durante os 35 anos de concessão.

Entretanto, existem inúmeras situações previstas na minuta dos contratos de concessão que poderão motivar revisões extraordinárias, sempre buscando o equilíbrio econômico-financeiro dos mesmos. As revisões extraordinárias objetivam, assim, gerir o risco deste tipo de concessão, em teoria, para contratado e contratante e poderão ocorrer por exemplo: no caso de atraso em obras decorrentes de demora no licenciamento ambiental; passivos ambientais anteriores ao contrato; indisponibilidade de energia elétrica; atrasos em obras ocasionadas por movimentos sociais e povos tradicionais; risco relacionado à disponibilidade hídrica do sistema; descumprimento de prazos e outras obrigações contratuais pela Agenersa etc. Ao todo, são descritas 26 “hipóteses” que poderão ensejar tais revisões contratuais para evitar impactos no equilíbrio econômico-financeiro da concessão.

Aqui, cabe a explicitação de como o equilíbrio econômico-financeiro pode ser reestabelecido: ou autoriza-se o aumento da tarifa e/ou redução da população atendida pela tarifa social, aumentando a receita do concessionário; ou prorrogam-se as metas existentes, reduzindo os aportes financeiros do ente privado. Ou seja, a primeira possibilidade fará com que haja aumento real da tarifa e a população arque com os custos decorrentes. A segunda levará a um descumprimento das metas de universalização dos serviços. Assim, as hipóteses de revisões contratuais geram uma insegurança a respeito dos serviços e valores a serem pagos pela população.

É de conhecimento geral que o estado do Rio de Janeiro ingressou em 2017 no Regime de Recuperação Fiscal do Governo Federal e pretende renová-lo em breve (setembro de 2020) e que, como consequência, dificilmente fornecerá autorização para que diversos órgãos estaduais realizem concursos públicos. Deste modo, é razoável imaginar que a redução dos quadros do Instituto Estadual do Ambiente (INEA) poderá gerar atrasos em um processo da complexidade do licenciamento ambiental – o qual deve realizar um diagnóstico abrangente das áreas possivelmente atingidas por obras que possam causar danos ao meio ambiente, propor alternativas e medidas de mitigação e compensação, entre outras.

Da mesma forma – e conforme mencionado no item #17 deste documento – sabe-se que a Agenersa tem um quadro extremamente reduzido e vem tendo solicitações de concursos negadas pelo executivo estadual – informação corroborada por representante da Agência em audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ).

O risco relacionado à hipótese de indisponibilidade hídrica também não pode ser negligenciado, em especial no Leste Fluminense. Segundo a redação da minuta do contrato, e assumindo-se que a concessionária vai auferir lucros, em parte, com a distribuição de água, é possível imaginar que a redução do volume ocasione desequilíbrio financeiro e que este custo seja transferido para o consumidor através de tarifas mais altas.

Não cabe aqui listar todas as questões sensíveis que envolvem cada uma das hipóteses que podem ocasionar revisões contratuais, mas sim reafirmar que essas possibilidades, sendo plausíveis e em alguns casos até prováveis, levarão ao aumento real da tarifa, transferindo-se o risco da concessão dos entes privados para os consumidores de água no estado do Rio de Janeiro.

8.2. Tarifa Social e Subsídio Cruzado

As informações até agora obtidas anunciam que haverá ampliação da tarifa social, o que é visto aqui como algo positivo, sendo uma necessidade urgente para possibilitar o acesso à água e ao esgotamento sanitário por grande parte da população. Entretanto, existem algumas informações que geram dúvidas em relação ao planejamento da ampliação e do financiamento da tarifa social nos documentos disponibilizados.

Em primeiro lugar, no preâmbulo do Edital e do Contrato existe uma menção à Lei Estadual 6.398/2018, que autoriza o aporte de recursos do Fundo Estadual de Conservação Ambiental (FECAM) para a manutenção do programa de tarifa social no município de Paraty, o qual tem os serviços de água e esgoto concedidos a uma companhia privada (Águas de Paraty, do grupo Águas do Brasil). No restante dos documentos, não fica claro o porquê desta referência, motivando algumas dúvidas: (i) existe alguma previsão de recursos oriundos do FECAM para a manutenção da tarifa social nos blocos ora licitados? (ii) os recursos para o programa de atendimento às famílias de baixa renda não será proveniente da renda obtida com a operação dos serviços?

Além disso, o item 34.4.10 da minuta do contrato determina que, caso a proporção de economias sujeitas ao pagamento de tarifa social ultrapasse 5% das economias ativas, o contrato poderá ser revisto. Ainda que a ampliação para 5% das economias ativas seja relevante, é preciso notar que, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) Contínua do IBGE (2018), 18,4% da população do estado vivem abaixo da linha da pobreza, proporção que tende a aumentar com a crise e o desemprego desencadeados pela pandemia do Covid-19.

Não há respaldo jurídico e econômico que possa sustentar o serviço público concedido nos moldes do subsídio cruzado para permitir a viabilidade, visto que não se pode remunerar um serviço deficitário. Nem tão pouco obrigar o município do Rio de Janeiro estar dentro desse processo de forma fracionada, de modo a garantir a viabilidade do processo de transferência de concessão.

Historicamente, está demonstrada que a oferta das tarifas sociais, é uma questão política de governo, portanto é preciso garantias não só para a população residente em áreas adensadas e informais, mas também nos locais com baixa densidade habitacional como as áreas rurais e as não urbanizadas. Essas regiões são que possuem déficits nos serviços de saneamento, muitas vezes necessitam da apresentação de modelos e tecnologias sociais adaptadas à realidade da urbanização diferenciada ou da ausência de instrumentos clássicos de distribuição de água e coleta de esgoto. Portanto, a garantia do acesso à água de qualidade e em quantidade e ao saneamento é fundamental para produção da vida e da saúde, uma questão para além da garantia da tarifa social descrita dentro do projeto de concessão.

A prestação regionalizada como forma de manutenção do subsídio cruzado define que os estados e a União, de forma subsidiária, deverão estabelecer os blocos para este tipo de prestação, o que fere a autonomia dos municípios e do Distrito Federal em relação à titularidade dos serviços. De acordo com a legislação brasileira, os estados podem instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões; todavia, não há previsão de imposição de formação de outros blocos de municípios para prestação de serviços (ver Art. 25 da Constituição Federal de 1988 e Lei 13.089/2015).

A garantia da tarifa social tem um importante papel na ampliação do acesso aos serviços de saneamento, contudo há grandes diferenças na forma como esse benefício vem sendo tratado pelas operadoras do serviço, há quem proponha que toda população cadastrada no CadÚnico seja automaticamente beneficiada com a tarifa social.

Quanto aos recursos provenientes da outorga, eles devem ser direcionados exclusivamente para as ações de saneamento básico, devendo haver total rastreabilidade desses expressivos recursos financeiros.

9. Fiscalização de Obras

Considerando que a execução de obras de engenharia deverá ser realizada por meio de contratos e termos de referência específicos, a partir de projetos executivos (estudos, peças  gráficas, memoriais de cálculo, descritivos, justificativos, especificações técnicas de equipamentos, materiais e serviços, método executivo etc) a serem estabelecidos pelas prestadoras de serviço que terão a concessão dos serviços públicos dos SAA e SES, as questões aqui apresentadas devem ser consideradas como pressupostos ou diretrizes a serem cumpridas, tendo em vista a necessidade de capacidade do Estado de realizar a fiscalização das obras e do consequente cumprimento das metas estabelecidas pelo Edital de concessão. 

Dentre os recursos financeiros e tecnológicos para a realização da fiscalização das obras para o cumprimento dos contratos é necessário a fixação de percentuais de recursos financeiros destinados ao Controle Tecnológico de Obras visando à qualidade, integridade e durabilidade das estruturas dos SAA e SES a exemplo das redes de abastecimento de água e coletora de esgoto sanitário, seus órgãos acessórios, equipamentos, elevatórias, processos e operações unitários das estações de tratamento entre outros.    

A participação social durante a realização de obras é fundamental para a mediação e redução de conflitos, bem como a redução dos impactos socioambientais durante sua execução nos territórios. Nesse sentido, é necessária constituição de uma Comissão de Acompanhamento de Obras, que viabilize a participação social de moradores, que são os interessados diretos pela qualidade das obras, sua eficácia e durabilidade.

Como será a fiscalização de obras por parte do poder público, bem como o controle por parte do Tribunal de Constas do Estado? Cabe destacar a importância da Agência Reguladora e das entidades de controle social que deverão acompanhar as obras em sua qualidade, eficácia na operação e nos cumprimento dos contratos.

10. Operação e Manutenção

A avaliação sistemática e periódica das condições de operação, manutenção e conservação do SAA e SES deve incluir a identificação e registro dos fatores de riscos tecnológicos, de produção, sanitários e ambientais por meio de rotinas de inspeção e atualização das condições operacionais e mapeamento atualizados (como construído e cadastros), com base nos seguintes cenários: (i) condições de operação e manutenção normal; (ii) condição atípica (em não conformidade com regulamentações, procedimentos operacionais e edital); (iii) condição emergencial e (iv) condição de desastre. Nos manuais de operação e manutenção, cada cenário desse deve compor os diversos fatores causais, as ações preventivas e corretivas, bem como a consecução de planos de contingência e emergência. A previsão de ações de contingencia e emergência já está prevista em termos de referencias de planos municipais de saneamento básico (PMSB).  

Para que a operação seja eficaz e eficiente e a manutenção preditiva há necessidade de periodicidade e, considerando todos os critérios, promover atualizações necessárias para a integridade dos sistemas. Os cenários distintos de operação e manutenção dos sistemas acima citados requerem uma avaliação sistemática na perspectiva do gerenciamento de risco.

Essas informações devidamente mapeadas e georreferenciadas são necessárias para a superposição de camadas da distribuição das DRSAI com as condições de operação e manutenção do sistema. A título de exemplo destacamos a intermitência e a relação com arboviroses, bem como o colapso da rede de esgoto, com transbordamento de esgoto em vias públicas em regime de estiagem e de chuvas com a incidência de casos de leptospirose. Esses aspectos deveriam estar contemplados no Caderno de Encargos. Informações necessárias para a elaboração e atualização dos planos municipais de saneamento básico.       

Sobre o Programa de Redução e Controle de Perdas de Água, o Caderno de Encargos não apresenta o detalhamento, nem cronograma de implantação etc. Na perspectiva da sustentabilidade socioambiental, considerando o estresse hídrico que as cidades vem sofrendo diante de multicausalidade e multiescalaridade, a exemplo das mudanças climáticas, o controle de perdas de água deveria fazer parte de um Programa de Uso Racional das Águas que contemplasse de forma sistêmica os componentes (i) controle de perdas de água no sistema público e orientações quanto aos desperdícios de água nas habitações; (ii) reuso de águas residuárias e; (iii) aproveitamento de águas pluviais.

Entretanto, essas ações por mais que tenham justificativas socioambientais, econômicas, de geração de renda, de promoção da saúde e da ssustentabilidade, dificilmente serão implementadas pelas prestadoras de serviço se não estiver claramente detalhada e preconizado pelo projeto do Edital, uma vez que pode reduzir a conta de água dos usuários o que diminui o lucro das empresas privadas.

Deve ser previsto pelo Edital e documentos constituintes a realização de auditorias ambientais, inspeção sanitária das autoridades de saúde pública e monitoramento operacional, incluindo medições in situ e análises laboratoriais (acreditados pela NBR/ISO/IEC 17.025) nas estações elevatórias, estações de tratamento de água e de esgotos, a fim de se avaliar a eficiência de tratamento, a gestão ambiental e gestão de riscos, na perspectiva da saúde ambiental e da saúde do trabalhador.

Diversos problemas das estações de tratamento começam com a não conformidade dos seus afluentes, portanto o monitoramento deve compreender todas as etapas dos SAA e SES. Nesse sentido, devem ser apresentados os termos de referência para elaboração dos respectivos manuais, em consonância com documentos do Ministério da Saúde, a legislação ambiental, o atendimento a classificação e enquadramento das coleções hídricas e de programas, a exemplo do Plano de Segurança da Água (PSA), já previsto na Norma de Potabilidade de Água do Ministério da Saúde.      

O levantamento cadastral de todos os componentes de SAA e SES, incluindo as suas condições operacionais, deve ser realizado anualmente e publicizado nos sites oficiais das respectivas empresas prestadores de serviços, garantindo a atualização das informações, inclusive para o desenvolvimento de estudos e pesquisas na área de saneamento e saúde ambiental.  

A prestadora de serviço deve disponibilizar de forma atualizada em seu site oficial o respectivo “Manual do Usuário”, com todas as informações necessárias que estabeleça os direitos e deveres dos usuários, bem como o detalhamento de projetos de ligações domiciliares, cavaletes de hidrômetros, limpeza e desinfecção de reservatórios inferiores e superiores, utilização de filtro domiciliar, caixas de gordura, tanque séptico e filtro anaeróbio, sistema de aproveitamento de águas pluviais, etc, com a linguagem adequada, com ilustrações devidamente para a população em geral.

11. Compatibilização entre Plano Metropolitano, Planos Municipais de Saneamento Básico e Planos Diretores Municipais de Água e Esgoto

A viabilidade dos processos de privatização tem a fragmentação e o recorte das águas como um plano de negócio, para reduzir o tempo de rotação do capital, aumento da especulação, garantindo ganhos a toda cadeia produtiva, como empresas concessionárias, fornecedores, grandes compradores, seguradoras e certificadoras, governos e financiadores. Transformando a água em principal mercadoria, que é sustentado pelas tarifas que a população paga.

No modelo apresentado na consulta pública, as regiões do município do Rio de Janeiro estão contidas nos quatro blocos, de forma fracionada. Os bairros da cidade do Rio de Janeiro encontram-se distribuídos de modo a tornar os blocos viáveis quanto à remuneração do serviço. Mas como a adesão do município aos blocos é facultativa, não há informações suficientes no projeto que garantam a viabilidade dos blocos, caso o município do Rio de Janeiro ou outro município não venham a assinar o contrato e integrar os blocos na forma da proposta.

Na divisão dos blocos de licitação e repartição da outorga fixa, prevista no contrato, está sendo considerando a adesão integral de todos os municípios contemplados no projeto, mostrando mais uma vez a importância do município do Rio de janeiro na viabilidade do edital, pois a cidade vai pagar a maior porcentagem dos valores de outorga fixa prevista. No bloco 1 com a composição de 41 municípios a cidade do Rio de janeiro é responsável pelo pagamento de 32,36% do valor total da outorga, no bloco 2 com a composição de 8 municípios a porcentagem é de 75,67%, no bloco 3 com 9 municípios 72,60% e no bloco 4 com 9 municípios 47,09%, esses valores foram calculados segundo o documento conforme estimativas de população divulgadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com data de referência em julho de 2018.

Todavia, caso a cidade do Rio de Janeiro venha a excluir seus bairros nos blocos, as garantias mínimas de universalização do saneamento estariam sob risco devido à previsível baixa lucratividade da arrecadação nos outros municípios, pois a capital é responsável por 77% da arrecadação da Cedae. Se isso acontecer há maiores riscos de exclusões sociais, mais desigualdades e aumento dos problemas de saúde. Considerando que não há respaldo jurídico e econômico que possa sustentar o serviço público concedido nos moldes do subsidio cruzado para permitir a viabilidade, visto que não se pode remunerar um serviço deficitário e não se pode obrigar o município do Rio de Janeiro a aderir ao projeto, de forma fracionada, de modo a garantir a viabilidade do processo de transferência de concessão, praticamente para o Estado como um todo. Caso haja a adesão do município do Rio de Janeiro e de outros municípios que resultem em alterações do Edital, isso exigiria a revisão dos documentos do processo e nova consulta pública.

Os planos apresentados nesse Edital não consideram a compatibilização com estudos e programas ainda em andamento a exemplo da conclusão das obras do Programa de Despoluição da Baia de Guanabara (PDBG) e do Programa de Saneamento Ambiental dos Municípios no Entorno da Baía de Guanabara (PSAM).

De acordo com o Caderno de Encargos, tem-se “6.2 Plano Diretor a Concessionária deverá desenvolver um Plano Diretor para cada município, que deverá estar compatível com o disposto no respectivo Plano Municipal de Saneamento ou ao Plano Regional de Saneamento Básico nos capítulos relativos ao abastecimento de água e esgotamento sanitário, abarcando todos os municípios do respectivo bloco, em um prazo de até 01 (um) ano após a assunção do sistema, considerando as principais ações para alcançar as metas apresentadas no capítulo 4 deste ANEXO, consubstanciado em um plano de obras, cronograma e respectivos investimentos requeridos a serem desenvolvidas no âmbito da área da concessão, que possibilitem a gestão eficiente dos investimentos previstos para ampliação e melhoria dos sistemas de água e de esgotos, bem como o controle do atendimento das metas de atendimento das previstas”.

Como será compatibilizado os diversos planos e programas com prazos e produtos distintos para diversos municípios, que de fato realize diagnósticos e prognósticos com o mapeamento das estruturas e ações em escala compatível para análise crítica e planejamento que integrem todos os componentes do saneamento básico, além de considerar os indicadores de saúde?

Para que não haja divergências, os estudos que supostamente justificariam a consecução dos planos diretores municipais deveriam estar contidos nos Planos Municipais de Saneamento Básico, principal documento norteador das políticas públicas que deve viabilizar a efetiva participação social. Portanto, entendemos que se faz necessário que sejam incluídas garantias para manter o caráter de serviço público do saneamento com qualidade e transparência, que é de interesse da sociedade.

12. Melhorias Sanitárias Domiciliares e Tecnologias Sociais

Em diversas áreas do estado do Rio de Janeiro, em especial nos territórios vulnerabilizados, sejam nas favelas, bairros populares, periferia e no interior do Estado com expressivas populações de baixa renda, o acesso ao abastecimento de água e ao esgotamento sanitário requer a implantação de melhorias sanitárias domiciliares de instalações hidrossanitárias que viabilize o direito ao acesso à água e ao esgotamento sanitário.      

A previsão orçamentária para instalações hidrossanitárias seja para soluções individualizadas ou para que permita a conexão com os SAA e SES é necessária para acesso e universalização do saneamento. Nesse sentido, essa previsão deveria estar contemplada no Edital, sob risco dos municípios que pertencerem a determinados blocos não terem condições de acompanharem as intervenções das prestadoras de serviços privados e com isso resultarem em adiamento ou descumprimento das metas, aumento tarifário ou impasse entre poder público municipal e prestadora de serviço por indefinições quanto ao escopo na prestação dos serviços que deveriam estar definidos na modelagem. 

Em diversas comunidades com dificuldades de acessibilidade (geográfica, física, financeira, informacional, jurídico) a adoção e fomento de tecnologias sociais de abastecimento de água e esgotamento sanitário com soluções condominiais, por agrupamentos de habitações ou unifamiliares, que possa inclusive ser geradora de renda, poderia ser considerada a tecnologia apropriada, a exemplo do aproveitamento de água de chuva e a produção de biogás proveniente de biodigestores.

Entretanto, para que essas alternativas tecnológicas possam ser implantadas pelas famílias, pelos poderes públicos ou mesmo como projetos socioambientais pelas prestadoras de serviço seria necessário que elas estabelecessem critérios e procedimentos de instalação, operação e manutenção adequados. Não obstante, serem soluções promotoras de sustentabilidade socioambiental, na perspectiva dos usos múltiplos das águas, a utilização de águas de chuva para fins que não seja a dessedentação humana poderia reduzir os custos na conta de água por não passarem pelos hidrômetros. Entretanto, isso poderia ser considerada pelas prestadoras de serviços privadas como redutora de sua rentabilidade e de previsão de lucro, dificultando com isso sua execução.  

O item 34.4.26 do Contrato de Concessão preconiza que a ausência de implantação de asfaltamento ou rede de drenagem na área de concessão que impeça a concessionária de realizar os investimentos para alcançar as metas de atendimento poderá ensejar a revisão extraordinária do equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Esse item poderá abrir uma serie de justificativas e precedentes para aumento da tarifa ou do adiamento nas metas de atendimento em especial para os bairros populares, aglomerados subnormais, bem como as populações do campo, da floresta e das águas, considerando as especificidades geográficas e das diversas condições e formas de urbanização das ocupações subnormais. Nesse sentido, o Edital deve suprimir esses critérios para impedir a generalização desse precedente.

13. Sistema de Informação

Ao analisar o Anexo III – Indicadores de Desempenho e Metas de Atendimento, seria necessário mais descrições sobre o cálculo dos 11 indicadores de desempenho, com detalhamento das fórmulas de cálculo e as informações envolvidas que compõem a formulação, bem como o glossário de informações de cada variável, bem como as respectivas referências.

Com relação à seleção dos índices quando se estipula que o cálculo deve ser executado sem significativo esforço adicional entende-se que serão utilizadas variáveis já coletadas por outras instituições que já fazem estes levantamentos anualmente como é o caso da pesquisa do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). Percebe-se no Quadro 1 que alguns índices são coletados aparentemente desta pesquisa devido a semelhança no formato do cálculo, mas não está especificado no quadro. Aliás, no item 2.1 estão descritas as instituições e pesquisas de dados externos como Agência Nacional de Águas (ANA); Agências estaduais de meio-ambiente; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – Censo demográfico ou Pesquisa; Nacional de Domicílios (PNAD); Prefeituras abrangidas pelo Projeto; Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), contudo não é suficiente, pois cada uma destas instituições coletam os dados de uma maneira diferente para objetivos diferentes e por isso é importante que cada índice que for calculado deve ter seu metadado contendo a fonte de cada variável, bem como a interpretação do índice e seus limites de interpretação, que justamente está relacionado com a fonte da informação e consequentemente a metodologia de coleta do dado.

Entende-se que o objetivo do Anexo III não seja descrição de cada um dos sistemas de informações relativos à avaliação do desempenho de abastecimento e esgotamento, mas para haver clareza e confiabilidade nos índices que serão coletados é importante ter descrito em cada cálculo de índice a fonte não só da instituição mas também de qual pesquisa se trata já que cada uma das instituições acima pode estar envolvida em mais de uma pesquisa de levantamento de dados e somente o IBGE tem apontamento de duas pesquisas. As demais instituições não apresentam esta descrição.

No quesito “medição objetiva e imparcial de um aspecto específico do desempenho da CONCESSIONÁRIA, de modo a evitar julgamentos subjetivos ou distorcidos” deveria ser inserido os dados do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (SISAGUA) existente no Ministério da Saúde a Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador (DSAST) o qual faz a verificação de parâmetros analisados e divulgados pela prestadora de serviço de abastecimento para apoiar alguns dos cálculos, pois entende-se que as concessionárias prestadoras de serviços devem ser auditadas por outras instituições, que não a própria prestadora para garantir a idoneidade da informação. Se o SAA é prestado à população é mais importante envolver nos índices desempenho principalmente na parte dos dados de vigilância que tem como finalidade armazenar informações sobre as inspeções sanitárias das formas de abastecimento de água e sobre o monitoramento da sua qualidade realizado pelo setor saúde.

Fazendo uma observação geral com relação aos dados do SNIS é importante considerar em relação aos dados de serviço de abastecimento, que o estado do Rio de Janeiro apresenta um total de 87 municípios que respondem e com relação ao esgotamento sanitário 70 municípios respondem a pesquisa, que reflete respectivamente 94,56% e 76,08% do total de 92 municípios do estado do Rio de Janeiro. Outro fato que deve ser destacado com relação a estes dados é que a maioria dos índices menciona a população urbana e fica o questionamento se a população rural não está sendo considerada nestas análises como será atendida? Segundo as estimativas do SNIS para 2018 subtraindo a população total da população urbana teríamos uma estimativa de 551.585 pessoas para esse período.   

Em mais de um índice há uma descrição: “factíveis de ligação”. É preocupante no sentido da universalização do SAA e SES, pois se os lugares identificados como não factíveis pela prestadora tais ligações não seria realizada? E se os lugares com esta limitação forem justamente as áreas de favelas, que mais necessitam destas intervenções urbanas para proteção da saúde destas populações?

Abaixo estão algumas considerações com relação aos cálculos dos índices da Tabela 1.

  1. Embora o documento afirme que se baseou nos indicadores existentes no SNIS, no índice de atendimento urbano de água (IAA – Tabela 1) existe uma mudança importante na definição da informação AG013 do SNIS, que será utilizada para o cálculo do indicador. No SNIS AG013 é “quantidade de economias residenciais ativas de água, que estavam em funcionamento no último dia do ano de referência”. Na Tabela 1, AG013 é definido como “quantidade de economias residenciais de água factíveis de ligação”, o que pode alterar significativamente o seu valor dependendo de como serão definidos a factibilidade de ligação, o que não está definido no referido documento. Pode-se definir que todas as economias residenciais localizadas em comunidades ou áreas periféricas, não sejam factíveis de ligação por diversos motivos e, portanto, estariam fora desse cálculo. Existe ainda um erro na informação utilizada no denominador do cálculo, não existe G003, provavelmente foi um erro de digitação, porque só existe AG003 no SNIS, que indicaria a quantidade total de economias ativas de água (residenciais ou não). Concluindo, este indicador proposto (IAA) é completamente diferente dos indicadores do SNIS: IN023 (índice de atendimento urbano de água), que utiliza outras informações para o seu cálculo, ou mesmo o IN043 (índice de participação das economias residenciais de água no total de economias de água) que é calculado da mesma forma que o IAA e destina-se a avaliar quanto das economias residenciais representam do total de economias ativas, ou seja, objetivo completamente diferente do proposto pelo IAA. Deve-se enfatizar que o conceito de economia factível de ligação NÃO EXISTE NO SNIS;
  2.  O índice de perdas na distribuição (IPD) usa cálculo análogo ao IN049 do SNIS;
  3. Já o índice de continuidade do abastecimento de água (ICA) é calculado pela razão entre a quantidade de reclamações relativas ao abastecimento atendidas em até 48 horas e a quantidade total de reclamações relativas ao abastecimento atendidas. Entretanto, não fica claro o que se quer dizer com “atendimento de reclamação”, necessariamente é o restabelecimento do abastecimento ou basta que seja atribuído um número de protocolo pela prestadora? De qualquer forma estas informações (NRC) não existem no SNIS com esta definição, existem apenas informações das quantidades de reclamações ou solicitações de serviço (QD023) e quantidade de serviços executados (QD024), não existem referências a atendimento em 48 horas. No caso de serviços executados, a conclusão do serviço (definido no SNIS) significa o fechamento da ordem de serviço (X180). Nada disso está explicitado no indicador ICA.
  4. No indicador índice de qualidade de água (IQA) faz-se referência à quantidade de amostras fora do padrão para os parâmetros “cloro residual + turbidez + cor + odor” em relação ao total de amostras, supostamente analisadas, para estes parâmetros. Entretanto no SNIS, não existe informação referente à cor e odor, mas temos informações sobre coliforme total que não está incluído neste índice, o que é de se estranhar visto que o parâmetro microbiológico é fundamental para indicar a qualidade da água e a integridade do sistema;
  5. O índice de atendimento urbano de esgoto (IAE), da mesma forma que IAA, se refere à quantidade de economias residenciais de esgoto factíveis de ligação, o que não encontra abrigo nas definições utilizadas no SNIS para a informação ES003, que trata do total de economias atendidas por rede de coleta de esgotos e suscita as mesmas críticas já feitas ao IAA, assim como, a informação utilizada no denominador (GE003);
  6. No índice de tratamento do esgoto (ITE) utiliza-se a quantidade de esgoto tratado em relação ao esgoto coletado, semelhante ao indicador (IN016) do SNIS. Entretanto não se considera a quantidade de esgoto gerado, que dependendo da quantidade coletado, pode levar a uma falsa ideia de elevado nível de tratamento dos esgotos. Assim, se for coletado apenas 5% do esgoto gerado, ou seja, 95% do esgoto gerado não é lançado em redes coletoras, mas, por exemplo, em corpos hídricos, e se trate todo este esgoto coletado, teríamos um índice de tratamento de esgoto de 100%, o que seria uma ilusão porque a grande parte do esgoto estaria sendo lançado no ambiente sem tratamento. Portanto, deve-se considerar a magnitude da cobertura da rede de coleta de esgotos para se ter uma real dimensão do quanto do esgoto total é tratado. Por exemplo, no diagnóstico do SNIS de 2018 temos que na região Norte do Brasil 83,4% dos esgotos coletados é tratado, mas isso representa apenas 21,7% do total de esgotos gerados nessa região, visto que a rede de coleta de esgotos atende a apenas 10,5% dos municípios dessa região presentes no levantamento do SNIS (2018).
  7. Em relação ao índice de conformidade de tratamento de esgoto (IQE) cujo cálculo é a razão do número de amostras com DBO5 fora do padrão em relação ao total de amostras analisadas para DBO5. Não existe referência a este parâmetro nos dados do SNIS. Pode-se imaginar que o padrão referido seja o determinado pela Resolução CONAMA 430/11, para os padrões para efluentes de estações de tratamento de esgotos sanitários (i.e. 120 mg/L). Entretanto, isso necessita de esclarecimento;
  8. Os dois indicadores de desempenho gerencial: índice de satisfação dos usuários (ISU) e índice de eficiência para reparo de desobstrução na rede ou ramais de água (RDR), não tem paralelo nos indicadores do SNIS, excetuando-se as já citadas informações das quantidades de reclamações ou solicitações de serviço (QD023) e quantidade de serviços executados (QD024). Mais adiante no texto o indicador RDR se refere a reparo e desobstrução na rede ou ramais de esgoto, o que provavelmente é a definição correta e só exemplifica mais uma vez como o documento tem vários erros inaceitáveis de redação e que sugere ter sido preparado às pressas sem o devido cuidado e zelo. Além disso, não existe uma definição clara sobre o que seriam: “pesquisas de satisfação que atendem aos padrões de qualidade” ou “quantidade de serviços realizados nos prazos definidos nas ordens de serviço” que serão utilizados nos cálculos destes indicadores. Como será a auditoria destes indicadores? A experiência do SNIS, onde os próprios prestadores fornecem as informações da qualidade dos serviços que prestam, descrita tanto nos relatórios anuais como na base de dados, demonstra como este modelo não tem funcionado. Existem diversos indicadores, onde os valores reportados não parecem corresponder à realidade, tais como as paralisações e intermitências dos sistemas de água e extravasamento dos esgotos. Mesmo quando o sistema online obriga os prestadores a reportar valores nos campos dos indicadores, muitas vezes são reportados valores iguais à zero. As inconsistências observadas, nos dados de qualidade do SNIS, se mostraram tão relevantes, que foi publicada a Portaria nº 719, de 12 de dezembro de 2018, do Ministério das Cidades, atual MDR, que institui a metodologia para a auditoria e a certificação de informações do SNIS, relacionada aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, de competência das agências de regulação dos serviços de saneamento. Esta portaria visa aprimorar a qualidade das informações fornecidas ao SNIS pelos prestadores. Segundo a portaria, os prestadores de serviços devem seguir as recomendações do Manual de Melhores Práticas de Gestão de Informações sobre Saneamento, que auxiliará a geração de informações com maior grau de confiabilidade e exatidão.
  9. Por fim, os dois indicadores de desempenho ambiental, índice de regularidade documental (IRD) e índice de desempenho do coletor de tempo seco (CTS) também não tem paralelo aos indicadores do SNIS. Na verdade o SNIS considera adequado apenas o atendimento com rede coletora de esgotos e não prevê atendimento por rede de coleta em tempo seco.

Continuando a análise do documento observou-se:

No item 2.1 do referido documento, os autores tentam fazer uma distinção entre fontes internas e externas de dados para a aferição dos indicadores, definindo o primeiro tipo como dados obtidos junto a concessionário/prestadora e o segundo junto a outras fontes (ex: Prefeituras, IBGE, ANA, etc.). Entretanto, cometem alguns erros como ao afirmar que os dados do SNIS são externos, uma vez que sua origem é a própria prestadora. Assim, como assume que as Prefeituras teriam o cadastro das economias ativas, que seriam os clientes da prestadora.

No item 2.2 das metas dos indicadores de desempenho, os autores voltam a se referir aos dados do SNIS como fonte confiável e disponível de informações para a definição de metas. Entretanto, como apresentado aqui, existem sérias limitações nos dados do SNIS, como sendo apenas de fontes internas (própria prestadora) e apresentarem pouca acuracidade e confiabilidade no que se refere aos indicadores de qualidade.

Deve-se ressaltar que no modelo proposto, os valores iniciais dos indicadores devem ser validados pela concessionária por metodologias diversas, não totalmente especificadas no texto (ex: índice de perdas na distribuição onde se sabe que historicamente os níveis tanto de macromedição como de micromedição no estado do Rio de Janeiro são baixos, sendo muito inferiores as médias nacionais e regionais, conforme relatado nos relatórios do SNIS) e que devem ser aprovados pelo órgão regulador. Aqui cabe um comentário sobre a fragilidade da capacidade de regulação das agências reguladoras dos serviços de saneamento no país, explicitada como a principal razão para a recente mudança no marco regulatório do saneamento no Brasil, que instituiu a ANA como agência federal para editar normas de referências nacionais para a regulação da prestação dos serviços de saneamento. Assim, todo este modelo proposto, baseado em uma regulação forte com agências bem estruturadas, parece ser muito arriscado, pouco confiável e com grande chance de não funcionar a contento considerando a realidade brasileira regulatória do setor saneamento;

Outra questão relevante no item 2.2, refere-se à afirmação que as amostras de água que a Cedae entregar fora do padrão de qualidade definido, não serão consideradas para fins do cálculo do indicador de desempenho da qualidade da água que a concessionária deve cumprir, no caso de 98% das amostras analisadas estarem conformes com o padrão. Esta afirmação gera imediatamente duas questões: como será feita e quem fará a aferição da qualidade da água fornecida pela Cedae? Se for a própria concessionária como isso será auditado? Como e quem fará a arbitragem entre a Cedae e a Concessionária, caso ambas divirjam quanto à qualidade da água fornecida? Porque isto abre um grande precedente para que a Concessionária nunca tenha que cumprir este indicador de desempenho, alegando que os problemas são oriundos da água fornecida pela Cedae. A Concessionária não será obrigada a corrigir os eventuais problemas de qualidade da água que ela distribui? Quem responderá junto à autoridade de saúde pública quanto à qualidade da água oferecida a população?

Em relação às localidades contempladas com a implantação do sistema coletor de tempo seco, o anexo não define onde isto ocorrerá e ainda propõe que durante 5 anos a Concessionária não precise investir para ampliar a oferta de coleta de esgotos. Apenas no 6º ano de concessão é que iniciará a ampliação da rede em relação ao índice inicial de atendimento por coleta de esgotos.

Para o processo de medição, acompanhamento e aferição dos indicadores, o documento introduz um terceiro ente, além da Concessionária e da Agência Reguladora, que seria uma empresa verificadora independente. Este terceiro ente faria a auditoria dos dados produzidos pela Concessionária, fornecendo elementos para que a Agência possa julgar se a Concessionária esta cumprindo com o estabelecido no contrato. Isto nos parece uma confissão de que a Agência Reguladora não tem e nem está sendo previsto que terá capacidade ou competência técnica para cumprir com suas funções institucionais e necessita contratar outra empresa para cumprir com as suas atribuições/responsabilidades.

O peso dos indicadores não está descrita no Anexo III e desta forma fica o questionamento de como foram estabelecidos os pesos para cada índice.

14. Universalização e Integralidade dos Componentes do Saneamento Básico

Os documentos constituintes do Edital não permitem ter uma definição de quais áreas terão a ampliação dos SAA e SES. A ausência de peças gráficas que permitam identificar as áreas dos projetos de engenhara dos respectivos municípios geram questionamentos, inseguranças e mesmo imprevisibilidade das cláusulas contratuais a serem celebradas com as prestadoras de serviços.

No documento intitulado “Contribuição ao conteúdo do Edital de Concessão dos Serviços de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário do Estado do Rio de Janeiro”6 elaborado por especialistas do Departamento de Recursos Hídricos e Meio Ambiente da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Drhima/EP/UFRJ), tem-se: 

Quanto aos Índices e Metas de Atendimento: A evolução temporal das metas de atendimento estabelecidas pelo Edital refere-se ao atendimento global do município, não havendo qualquer referência da repercussão das mesmas sobre o espaço físico- territorial do município. A documentação do Edital não contempla a indicação da evolução gradual da implantação dos setores de distribuição de água e respetivos sistemas produtores, bem como das bacias de esgotamento sanitário e respectivos sistemas de tratamento. O mesmo ocorre no sentido das metas fixadas para o controle de perdas de água e para a implantação da hidrometração. Os diagramas esquemáticos que os Planos Municipais contemplam não permitem a compreensão da influência dos mesmos sobre a área urbana municipal, respectivos bairros e moradia dos usuários, e prejudicam a devida avaliação da proposta de concessão dos serviços urbanos por parte dos munícipes e demais interessados. A lógica de condução dos propósitos do Edital, baseada, primeiramente, na fixação de metas e sem o devido rebatimento da influência dos investimentos sobre o espaço físico físico-territorial traz vício e erro da lógica que, em geral, conduz a elaboração de Planos Municipais de Saneamento Básico. São documentos de planejamento desprovidos de conteúdo de engenharia com a qualidade e detalhamento que o objeto requer e que se estruturam, meramente, com base na proposição e no acompanhamento de índices e indicadores. Como consequência, não explicitam o que fazer, aonde, quando e por quanto. Apesar do caráter impositivo, metas fixadas não terminam em si mesmas. Precisam ser confirmadas a partir de um plano criterioso de hierarquização dos investimentos e do entendimento de quando serão alcançadas a partir do que precisa ser feito por um determinado valor em algum lugar. A documentação do Edital faz menção às metas de atendimento e metas de universalização, separadamente, mas também conjuntamente, devendo se atentar quanto a devida definição, pois constituem diferentes conceitos”

A falta de informações também se aplica também com relação à continuidade de programas da CEDAE, a exemplo da ampliação do Sistema Guandu e do PDBG/PSAM, conforme ofício enviado pelo Grupo de Atuação Especializada em Meio Ambiente do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (GAEMA/MPRJ)7.

No caso do município do Rio de Janeiro, o Plano Metropolitano do Município do Rio de Janeiro, Apêndice 15, os estudos não apresentam os sistemas de esgotamento do PDBG e do PSAM que foram previstos e projetados mas que não constam no item 3 OBJETIVOS E METAS PARA UNIVERSALIZAÇÃO DOS SERVIÇOS no subitem 3.3 Esgotamento sanitário. Em termos de abastecimento de água o projeto de ampliação do Sistema Guandu não foi citado. 

Áreas da Zona Sul foram consideradas como já atendidas pelo SES, entretanto não foram considerados a operação atípica que tanto transtornos causam à população. Os problemas do SES da Zona Sul da Cidade do Rio de Janeiro, incluindo-se as captações de tempo seco, comprometem a balneabilidade, trazendo riscos à saúde de um contingente expressivo da população que frequenta as praias e que não se limita aos moradores da Zona Sul, além de impactos negativos sobre o turismo e a economia do estado. O Interceptor Oceânico da Zona Sul apresenta problemas operacionais e de manutenção, com a pendência de construção de uma Estação de Tratamento de Esgoto, que é previsto conforme Plano Diretor de Esgotamento Sanitário da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e das Bacias Contribuintes à Baía de Guanabara de 1994. A balneabilidade das praias são impróprias, de forma recorrente devido ao esgotamento sanitário inadequado. Tal critica é feita pela própria Rio-Aguas, ao citar os problemas da captação de tempo seco de Botafogo e Flamengo.       

É necessário incorporar no Edital a exigência na avaliação das condições operacionais e a eficiência da Estação de Tratamento do Rio Carioca, da Estação de Tratamento do Canal da Rocinha, do Parque Ambiental da Praia de Ramos – consideradas estruturas atípicas ao sistema separador absoluto – bem como seus efeitos sobre a balneabilidade e a saúde da população. A universalização dos SAA e SES deve ser em termos quantitativos e qualitativos.

A ampliação, operação e manutenção dos SAA e SES compreendem serviços que envolvem, de forma imbricada, os outros componentes do saneamento básico tais como drenagem e manejo de águas pluviais e limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos. Além disso, interfere em outras infraestruturas e estruturas urbanas e rurais. Isso revela as contradições que virão da gestão urbana e rural que envolvem diversas instancias públicas e agora o setor privado, caso haja a privatização da concessão desses serviços. O papel da Agenersa passa ter um elemento de centralidade devendo ter condições para atuar de forma forte e independente tendo como diretriz central o interesse publico, conforme abordado no item #17.             

No Contrato de Concessão, nas definições, tem-se o item 1.1.47. Plano Municipal de Água e Esgoto: instrumento de planejamento aprovado pela região metropolitana contendo disposições e informações relacionadas aos serviços de água e esgoto, nos termos do artigo 19 da Lei federal no 11.445/2007. Os planos municipais de saneamento básico a serem elaborados e revisados, devem conter os quatro componentes do saneamento básico, de forma que possa ser analisada a interdependência entre eles e desses com relação as outras infraestruturas e estruturas urbanas, em especial relacionadas à saúde pública.    

A Lei nº 14.026/2020 e a Lei Federal no 11.445/2007 reconhecem que o saneamento básico é composto por quatro componentes: abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem e manejo de águas pluviais e limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos.

Para que houvesse a integralidade dos serviços de saneamento básico e a sua universalização, a concessionária que presta os serviços de abastecimento de água e esgoto também deveria executar a drenagem e o manejo das águas pluviais. Isso poderia tornar-se viável a partir da municipalização de todos os componentes do saneamento básico.

Justifica-se esse ponto na situação existente em diversos municípios em que existem interconexões irregulares entre os sistemas de esgotamento sanitário e as galerias de águas pluviais (GAP), considerando que os órgãos municipais são obrigados a fazer a manutenção do sistema de drenagem e que os gases sulfídricos dos esgotos danificam a tubulações e reduzem sua vida útil, além de contaminar os corpos hídricos e as praias. O eixo de resíduos sólidos por sua especificidade é exercido por outra empresa, apesar de a integração dos serviços ser desejável.

Pela legislação vigente, a sustentabilidade econômico-financeira dos serviços de saneamento, de acordo com Art. 29 da Lei 11.445/2007, deverá ser assegurada por meio de remuneração pela cobrança dos serviços, inclusive por meio de taxas e tarifas. Tal fato demonstra a necessidade de se reconhecer a importância de incorporar a drenagem e o manejo de águas pluviais aos serviços concedidos na proposta em pauta, especialmente por serem complementares aos demais.

Corroborando para essa argumentação o diagnóstico constante do Sistema Nacional de Informações em Saneamento (SNIS, 2018), diz que a maior parte dos municípios brasileiros não possui entidade específica responsável pela prestação dos serviços de drenagem, sendo, geralmente, considerados como uma atividade secundária, subordinada a outros componentes da infraestrutura urbana.

Além disso, considerando que a drenagem convencional pode ser complementada com soluções verdes ou soluções baseadas na natureza, atingindo um ponto ótimo de manutenção versus investimento, e que estas soluções deverão ser incentivadas pelas concessionárias, tendo em vista a melhoria da qualidade das águas nas bacias, a atenuação dos picos de cheia e a melhor eficiência dos demais serviços de saneamento, bem como a conscientização da população quanto à importância das coleções hídricos.

As ações de saneamento básico têm relação direta com a urbanização, com programas e projetos habitacionais, com a gestão pública urbana e rural, em síntese, com as políticas públicas e o interesse coletivo. A responsabilidade pela política de inclusão social não deve ser delegada às concessionárias, porque se trata de uma questão estratégica de gestão pública, diretamente relacionada com a saúde da população. Assim, consideramos insuficientes as descrições relacionadas com a universalização do saneamento, pois não abrange as áreas dos territórios socioeconomicamente mais vulneráveis. Apontamos que na documentação em consulta pública, ora traz descrito metas de universalização e metas de atendimento como se fossem a mesma coisa. Esse ponto também precisa ser revisado

É necessário realizar ações integradas entre as prestadoras de serviço, a agência reguladora, os entes federados, as autoridades em saúde pública, os órgãos de controle ambiental, os comitês de bacia, os conselhos de meio ambiente, os conselhos de saúde, as universidades e instituições de pesquisa com intuito de contribuírem para a efetividade do abastecimento de água e o esgotamento sanitário. As ações integradas se justificam em condições operacionais e de manutenção normal visando o fornecimento de informações e das ações intersetoriais bem como nas ações de co-responsabilidade derivadas de condições de operação em anormalidade, em situações de contingência, emergência ou desastres.

6Fonte: Disponível em http://drhima.poli.ufrj.br/index.php/br/destaque/noticias/314-contribuicao-ao-conteudo-do-edital-de-concessao-dos-servicos-de-abastecimento-de-agua-e-esgotamento-sanitario-do-estado-do-rio-de-janeiro. Acesso em 31 julho 2020.

7Fonte: Disponível em: http://www.mprj.mp.br/home/-/detalhe-noticia/visualizar/87501. Acesso em 31 julho 2020.

15. Ações Estruturantes

No Brasil, ações estruturantes é o termo utilizado pelos Planos Nacionais de Saneamento Básico e dos Planos Municipais de Saneamento Básico que compreendem ações gerenciais, de mobilização social, de participação social, controle social, educação, qualificação e formação técnica. São ações fundamentais para a efetividade das ações estruturais que englobam as obras de SAA e SES.

No Caderno de Encargos tem-se no item “6.4 Conscientização do Usuário – Considerando que o bom funcionamento de um sistema de esgotamento sanitário depende, em sua grande parte, da utilização adequada das instalações pelos USUÁRIOS beneficiados, uma fase importante da operação do sistema se refere ao processo de educação sanitária e conscientização dos USUÁRIOS. Esta é uma das etapas mais importantes para que seja conseguido o máximo de benefício pelo maior tempo possível das facilidades instaladas. A CONCESSIONÁRIA deverá elaborar um Programa de Comunicação Social e Educação Ambiental, visando a conscientização do USUÁRIO e, portanto, a sua colaboração. O Programa deverá ser elaborado em até 3 meses após o início da operação dos serviços e poderá seguir a seguinte metodologia…”

As orientações são superficiais e insuficientes. Faz referência ao SES, sem citar o SAA e o saneamento básico como um todo. O termo educação sanitária esta defasado, devendo ser substituído por educação em saúde. No mais, os temas colocados de forma aleatória sem uma proposta política e pedagógica de construção do conhecimento a partir da realidade de diversos grupos sociais, suas condições de vida, habitacionais e situação de saúde, se aproxima mais de um treinamento do que de fato de um programa de comunicação social de educação ambiental e seus resultados tendem a ser pouco efetivos ao serem confrontados com a realidade.

No Caderno de Encargos tem-se o item “6.15 Programas Socioambientais” com informações generalistas, sem definição de diretrizes, escopo, metodologia, cronograma, orçamento, entre outros. Caso esses programas socioambientais não sejam feitos com a participação da sociedade civil organizadas, corre-se o risco de se repetir o que já se viu em diversos programas de aplicação de recursos sem resultados efetivos ou pior que as ações socioambientais acabam se reduzindo a realizar propaganda da empresa ao invés de tentar de fato ter uma ação conjunta com os agentes públicos e atores visando as transformações sociais e a saúde ambiental e humana.     

Garantir as informações à população, de forma clara e linguagem acessível, sobre a qualidade de água para o consumo humano, sobre o esgotamento sanitário, as melhorias das condições de vida e os riscos associados à saúde precisam ser reforçados na modelagem. O direito à informação é pressuposto da participação social, do controle social, da democracia participativa e cumpre um papel fundamental educativo e formativo. 

As ações estruturantes para que de fato tenham efetividade precisam considerar a população como sujeito de direitos, e que, portanto, devem interferir os processos decisórios que tem relação direta com as suas condições de vida e situação de saúde. Tanto a mobilização social, quanto a participação social somente avançarão se houver instrumentos e espaços de controle social apresentados no item #7 desta nota técnica.

16. Cumprimento da Norma de Potabilidade de Água

De acordo com a Norma de Potabilidade de Água, Anexo XX, da Portaria de Consolidação Nº 5/2017, do Ministério da Saúde – Procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade, em seus artigos 25 e 26.

“Art. 25. A rede de distribuição de água para consumo humano deve ser operada sempre com pressão positiva em toda sua extensão.

Art. 26. Compete ao responsável pela operação do sistema de abastecimento de água para consumo humano notificar à autoridade de saúde pública e informar à respectiva entidade reguladora e à população, identificando períodos e locais, sempre que houver:

I – situações de emergência com potencial para atingir a segurança de pessoas e bens;

II – interrupção, pressão negativa ou intermitência no sistema de abastecimento;

III – necessidade de realizar operação programada na rede de distribuição, que possa submeter trechos a pressão negativa;

IV – modificações ou melhorias de qualquer natureza nos sistemas de abastecimento; e

V – situações que possam oferecer risco à saúde.”

Nesse sentido, a prestadora de serviço para estar em conformidade com a referida portaria deve apresentar, de forma periódica, caso não haja o fornecimento contínuo de água, com pressão adequada em toda sua extensão, o mapeamento com a identificação espaço-temporal dos trechos em que o abastecimento de água opere de forma atípica, com situação de intermitência, paralisação ou acidente no fornecimento de água, devendo a autoridade de saúde pública, a agência reguladora e a população serem informadas imediatamente. Destaca-se que tais condições de operação atípicas trazem riscos à saúde e a integridade do sistema de abastecimento de água.

Quais as implicações para a prestadora de serviço, para seus índices e metas, e para as populações que não estiverem com o abastecimento de água em conformidade com a norma de potabilidade de água?

De acordo com Artigo 13,

“Art. 13. Compete ao responsável pelo sistema ou solução alternativa coletiva de abastecimento de água para consumo humano:

(…)

IV – manter avaliação sistemática do sistema ou solução alternativa coletiva de abastecimento de água, sob a perspectiva dos riscos à saúde, com base nos seguintes critérios:

(…)

e) na qualidade da água distribuída, conforme os princípios dos Planos de Segurança da Água (PSA) recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) ou definidos em diretrizes vigentes no País”.

Diante da recorrência do estresse hídrico no Estado do Rio de Janeiro e consequente alterações qualiquantitativas da oferta de água deve ser previsto no Edital que a prestadora de serviço deva prever sob regulação da Agenersa, com apoio dos órgãos e instituições de saúde publica na elaboração e atualização frequente de Planos de Segurança da Água (PSA), de acordo com a metodologia e com o conteúdo preconizados pela Organização Mundial da Saúde ou definidos em diretrizes do Ministério da Saúde. A autoridade de saúde pública poderá recomendar a elaboração e implementação do PSA em situações que representem risco à saúde dos consumidores. No caso do Rio de Janeiro, a recorrência de crises hídricas justificam a sua recomendação já no próprio Edital de concessão. 

A fim de viabilizar a transparência quanto à implementação dos PSA, as empresas de abastecimento de água devem ser absolutamente comprometidas com a sociedade a quem prestam o serviço, sobre a qualidade da água de fornecem, estando engajadas na divulgação dos resultados das análises que realizam rotineiramente em seus laboratórios próprios ou subcontratados, além de subsidiar as vigilâncias estaduais e municipais com dados confiáveis e transparentes, trabalhando em conjunto com elas para que ações de prevenção e identificação de poluente, antes da ocorrência de contaminação da população.

Com este intuito, uma ação que se mostra eficiente para implementação de planos de segurança, é que a empresa de abastecimento participe efetivamente de ações formativas e educacionais para que os agentes poluidores sejam eles oriundos dos segmentos industriais, agrícolas, ou mesmo esgotamento urbano, possam reduzir suas atividades poluidoras.

Cabe também à empresa de abastecimento de água potável, fazer todas as notificações e inserções nos sistemas de vigilância da qualidade da água preconizadas pelo Ministério da Saúde, tal como Siságua, e nos casos de valores acima do limite máximo estabelecido, deve-se incluir órgãos ambientais, gestores de recursos hídricos, da área de alimentação e de uso e ocupação do solo, para a construção de medidas de intervenção. A empresa de abastecimento deve investir recursos para tecnologias disponíveis para remoção de resíduos químicos ou biológicos, perigosos à saúde, que estejam presentes na água.

A exemplo da pandemia de Covid-19, da interrupção do fornecimento de água devido a alteração da qualidade de água devido ao bloom de cianobactérias, do prolongamento de estiagem que reduza a oferta de água, dos desastres decorrentes de inundações, de acidentes e demais situações de risco à saúde, a prestadora de serviço, de forma integrada com a Cedae, tem que elaborar e implementar Planos de Contingência e Emergência diante de eventos de saúde pública, por definição, a situação que pode constituir risco à saúde pública, como a ocorrência de surto ou epidemia, doença ou agravo de causa desconhecida, alteração no padrão clínico epidemiológico das doenças conhecidas, considerando o potencial de disseminação, a magnitude, a gravidade, a severidade, a transcendência e a vulnerabilidade, bem como epizootias, agravos ou impactos à saúde humana decorrentes de alterações socioambientais, desastres ou acidentes. Esses estudos devem ser partes constituintes do PSA.  

17. Regulação e Fiscalização ao Cumprimento do Edital e Contratos

Considerando que o Decreto nº 7.217/2010 dispôs em seu artigo 23, que o titular dos serviços deve “estabelecer mecanismos de participação e controle social”, ou seja, cabe aos municípios essa atribuição. O que é agasalhado também pelo novo marco regulatório, a Lei Federal 14.026/2020, que define que o titular dos serviços públicos de saneamento básico deverá definir a entidade responsável pela regulação e fiscalização desses serviços, independentemente da modalidade de sua prestação. 

No caso da concessão regionalizada dos serviços no Estado do Rio de Janeiro, a regulação dos SAA e SES continuará sendo de responsabilidade da Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (Agenersa), é imprescindível que os quadros técnicos da referida agência sejam ampliados, com provimento de cargos por meio de concurso público, de modo a garantir o desempenho satisfatório das atividades regulatórias decorrentes dos novos contratos de concessão a serem firmados, dentro dos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. Portanto, compreende-se ser de necessário que a Agenersa seja isenta de cargos comissionados ou de indicações políticas.

Atualmente a Agenersa, reguladora dos contratos, conta com menos de 20 funcionários de carreira em seu quadro e vem tendo negados seus pedidos para a realização de concursos públicos devido ao Regime de Recuperação Fiscal do Estado do Rio de Janeiro.

Dentre as atribuições da Agenersa não consta expressamente a análise do cumprimento do Plano de Ação (item 21 da minuta do contrato), assim como não há previsão de penalidade pelo descumprimento de tal plano, estabelecendo no Caderno de Encargos que “Na eventualidade de a Concessionária não conseguir realizar a totalidade do investimento previsto para cada quadriênio, a Agência Reguladora poderá postergar esse investimento para o próximo quadriênio, observado o limite máximo de 20 (vinte) anos ou reequilibrar o contrato;

O Contrato de Concessão, no Anexo V, prevê a instituição e contratação do Verificador Independente e do Certificador Independente. O Verificador Independente será uma pessoa jurídica “responsável por auxiliar a AGÊNCIA REGULADORA na fiscalização do CONTRATO durante todas as suas etapas, competindo-lhe fazer o levantamento de informações e dados necessários à fiscalização do CONTRATO, notadamente no que concerne ao atendimento dos INDICADORES DE DESEMPENHO, previstos no ANEXO III – INDICADORES DE METAS DE ATENDIMENTO E NÍVEIS DE SERVIÇOS, dentre outras contribuições dispostas a seguir…”.

Menciona que o auxílio seria exercido por empresa especializada com comprovado conhecimento técnico sobre a prestação e gerenciamento de serviços e atividades similares aos desempenhados pela concessionária e estabelece condições e requisitos obrigatórios para sua contratação.

Já o CERTIFICADOR INDEPENDENTE seria “a pessoa jurídica, com a atribuição de acompanhar o cumprimento do PLANO DE AÇÃO e do cronograma de investimentos relacionado às ÁREAS IRREGULARES e ao coletor de tempo seco, em apoio à fiscalização do CONTRATO DE CONCESSÃO pela AGÊNCIA REGULADORA, conforme previsto no ANEXO IV – CADERNO DE ENCARGOS.

A instituição do Verificador Independente e do Certificador Independente é questionável, pois se constitui em uma espécie de “concessão da regulação”, atividade indelegável e intransferível do Estado. A forma mais efetiva de se garantir a independência e imparcialidade necessárias nas suas atribuições consideradas funções estratégicas para a eficácia dos SAA e SES e da consequente proteção da saúde pública seria ser desempenhada por servidores públicos concursados e com as condições compatíveis e proporcionais ao escopo, escala e complexidade dos serviços a serem regulados e fiscalizados.

Outro ponto é a criação do COMITÊ TÉCNICO, onde no Caderno de Encargos tem-se “21.7.2. Na hipótese de discordância do ESTADO ou da CONCESSIONÁRIA em relação aos valores dos investimentos que vierem a ser reconhecidos pela AGÊNCIA REGULADORA, poderão ser acionados os mecanismos de solução de conflitos previstos nas cláusulas 49 e 50.” no qual está previsto sua composição por 3 membros: 1 membro indicado pelo Estado (pode ser da esfera pública ou não); 1 membro indicado pela Concessionária e outro membro indicado conjuntamente pelo Estado e pela Concessionária. Além de diminuir o poder regulatório da Agência, pode aumentar o poder de influência do regulado. O recomendável é que o Comitê Técnico ou Colegiado, deva estar inserida dentro da Agência Reguladora, e preferencialmente, composto por seus Diretores ou Dirigentes.

É necessário que no Edital haja mecanismos que permita o acompanhamento por parte das instituições de pesquisa e acadêmicas, assim como comitês de bacia, das atividades da Agenersa, por meio da constituição de Observatórios, com o acesso amplo às informações da prestação de serviço de saneamento do setor privado, bem como da Agenersa, visando fortalecer suas atividades, evitando sua precarização e captura política. Essa orientação deve estar prescrita no Edital na perspectiva do direito à informação e do controle social.

18. Proteção dos Mananciais

O manancial utilizado para captação de água deve ter qualidade adequada ao bom funcionamento operacional da estação de tratamento de água (ETA). A poluição dos mananciais torna o tratamento dessas águas mais oneroso através do tratamento convencional, além de, em algumas circunstâncias, não conseguir tornar a água bruta  potabilizável, porque diversos poluentes não conseguem ser removidos satisfatoriamente, tais como: antimônio, bário, cromo hexavalente, tálio, derivados de petróleo, agrotóxicos e substâncias radioativas ou mesmo diante processos de eutrofização. Para evitar esses problemas, municípios maiores em países centrais financiam o tratamento de efluentes em regiões vizinhas visando à proteção das bacias hidrográficas. Assim, as águas desses mananciais passam a atender pelo menos requisitos similares à classe 2 da Resolução CONAMA 357/05, simplificando o processo de tratamento.

Adicionalmente, as soluções escolhidas pelos órgãos ambientais exigem que as estações de tratamento de esgoto apenas atendam às legislações de descarte de efluentes sem garantir que a classe do manancial seja preservada, pois dependendo da diluição obtida no corpo hídrico os padrões não serão atendidos. A concentração de contaminantes nos corpos hídricos devido à poluição difusa e/ou as características geológicas e biológicas não é desprezível, além disso, a vazão dos corpos hídricos varia ao longo do ano, sendo necessário exigir que sejam atendidos parâmetros mais restritivos que os da legislação de lançamento de efluentes de forma a garantir a preservação da qualidade ambiental do corpo receptor. Devido à relação entre a qualidade da água obtida depois do tratamento da água, o custo do tratamento e a qualidade da água do manancial que abastece a ETA, é preciso que a empresa concessionária apresente um planejamento de longo prazo para aprimorar a qualidade da água dos mananciais, reduzindo os custos do tratamento e melhorando a água fornecida à população. Eventuais ineficiências do SES das concessionárias privadas poderao recair sobre a Cedae que continuará operando por exemplo a ETA do Guandu.

Este planejamento, que não está presente na documentação do BNDES, deve ser participativo, incluindo os órgãos ambientais nas diferentes esferas, as companhias responsáveis pelas ETA, os Comitês de Bacias e os representantes da sociedade.

O Edital indica de forma superficial que áreas dos mananciais devem ser objeto de atenção específica, com adoção de medidas legais e com o desenvolvimento de instrumentos gerenciais de proteção, planejamento e utilização, de forma a adequar o planejamento urbano das bacias hidrográficas aos usos do corpo hídrico. Nesse sentido, quais serão as ações estruturais e estruturantes a serem realizadas pelas prestadoras de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, quais os cronogramas de execução e investimentos previstos? 

Quanto à classificação e enquadramento das coleções hídricas cumprimento com a Resolução 357, de 17/03/2005, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), dispõe sobre a classificação dos corpos d’água e diretrizes ambientais para o seu enquadramento, bem como estabelece as condições e padrões de lançamento de efluentes. Por sua vez, a Resolução 430, de 13/05/2011, do CONAMA, dispõe sobre as condições e padrões de lançamento de efluentes, complementando e alterando a Resolução 357 CONAMA e a NT-202.R-10 estabelece os Critérios e Padrões para Lançamento de Efluentes Líquidos em Águas Interiores ou Costeiras, Superficiais ou Subterrâneas do Estado do Rio de Janeiro. É imprescindível que os órgãos de controle ambiental contribuam com propostas para que de fato se estabeleça um cronograma de atendimento ao enquadramento de acordo com os usos previstos. Sabemos que este aspecto no Estado do Rio de Janeiro apresenta diversas não conformidades.       

19. Indicadores Econômicos

A documentação desta consulta pública pelo BNDES não apresenta Laudo de Cisão (Termo de Cisão) realizado por empresa especializada, que teria o intuito de apurar e de informar o patrimônio por bloco e por tipos de serviço, violando os princípios da publicidade e da transparência. Este laudo serviria para dirimir dúvidas e validar as projeções apresentadas e suas garantias de operação, além de mostrar como ficará o passivo atuarial e os ativos em garantia, pois existem obrigações presentes e futuras que devem ser cumpridas pela atual Cedae. Estas informações têm como objetivo assegurar o cumprimento do princípio do equilíbrio orçamentário do Estado do Rio de Janeiro. Nesse sentido, faz-se necessário apresentar projeção dos balanços anuais para o período de pós transferência de concessão, não somente dos blocos licitados, mas também da parte que restará da Cedae, a fim de ver se impactará positiva ou negativamente as finanças do Estado. Além disso, os valores de CAPEX e OPEX devem ter metas e devem ser registrados e acompanhados por tipo (manutenção e expansão); com definições claras e sistemática de contabilização e controle para apuração e validação dos valores apresentados como investimentos8.

É de se estranhar nas projeções de todos os blocos que o custo de compra de água pelas Concessionárias está em queda ao longo da concessão (proporcionalmente) a receita, contrariando a tendência mundial da elevação do seu valor econômico.

Diante desse cenário, é necessário e imprescindível a elaboração de um Laudo Técnico de Cisão com projeção dos balanços da Cedae e das Concessionárias, bem como seus impactos nas finanças do Estado do Rio de Janeiro e seus benefícios para sociedade (maior arrecadação, e independência econômico-financeira da Cedae, geração de emprego, impacto previdenciário e trabalhista, diminuição de doenças de vinculação hídrica, etc e seus reflexos no IDH dos municípios atendidos).

8Fonte: Nota técnica da ENSP/Fiocruz. Disponível em: http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/49587?fbclid=IwAR1siBb0YRFooISeFySv5wkNNkTjAQDgiFDC9QkaA5hhFddau-jstz0Et_8. Acesso em: 29 julho 2020.

20. Reestatização do Saneamento9

Nos últimos vinte anos há um movimento global de reestatização dos serviços urbanos de saneamento (água e esgoto). Várias cidades no mundo optaram por reestatizar devido à insuficiência e má qualidade dos serviços prestados por grupos financeiros privados. Entre os problemas observados estão a falta de investimentos em infraestrutura, aumento significativo de tarifas, deficiência de serviços e a extensão de danos ambientais.

Em 2000, três municípios já haviam optado pela remunicipalização, chegando a um total em 2015 de 235 serviços de saneamento remunicipalizados em 37 países. Municípios optaram por recuperar estes serviços, esperando pelo fim do contrato de prestação de serviços ou mesmo preferindo pagar a multa rescisória, devido ao grau de insustentabilidade dos serviços prestados.

A reversão destes processos é bastante onerosa. Em Berlim, o Estado para reverter o processo, negociou o pagamento de 1,3 bilhão de euros pela população no prazo de 30 anos. No caso do Brasil, um gasto como esse poderia representar menos recursos para levar serviços de saneamento a lugares onde ainda há falta de acesso. Menos recursos aplicados em saneamento significa mais gastos com saúde para tratar doenças evitáveis.

Ao se transferir um serviço público para o setor privado torna-se mais difícil a implementação de políticas públicas socialmente abrangentes, capazes de aumentar a extensão deste serviço para áreas carentes, pois estas não dariam retorno financeiro, visto que grupos privados visam principalmente alcançar a rentabilidade de seus investimentos.

O Estado do Rio de Janeiro está em vias de transferir a concessão dos serviços de saneamento para o setor privado, enquanto vários locais no mundo estão trazendo de volta para o âmbito estatal. Portanto, esse processo conduzido pelo BNDES está na contramão da evolução histórica. Por isso, para garantir que um serviço público tenha boa qualidade, seja socialmente abrangente e ambientalmente sustentável, beneficiando as gerações atuais e futuras, é necessário, aprender e incorporar as experiências e as práticas malsucedidas de outros países.

9 Fonte: Nota técnica da ENSP/Fiocruz. Disponível em: http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/49587?fbclid=IwAR1siBb0YRFooISeFySv5wkNNkTjAQDgiFDC9QkaA5hhFddau-jstz0Et_8. Acesso em 29 julho 2020.

21. Considerações Finais

Os aspectos abordados nessa nota técnica são determinantes para a universalização, equidade, integralidade, intersetorialidade, estudos sobre matriz tecnológica, sustentabilidade, participação e controle social, que são princípios fundamentais previstos no Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), em sua publicação de 2013, revisada em 2019. Entendemos que sejam imprescindíveis para o fortalecimento da indissociabilidade das políticas públicas de saneamento básico e saúde. 

Para que, de fato, a saúde pública seja o objetivo das ações estruturais e estruturantes de abastecimento de água e esgotamento sanitário, ela precisa estar contemplada nas diretrizes, critérios e detalhamento dos documentos que constituem o Edital de concessão, incluindo os estudos de engenharia sanitária e ambiental. Tal fato, a partir dos documentos analisados não foi constatado.   

Diante dos estudos realizados e das questões apresentadas nesta nota técnica concluímos, que as lacunas e inconsistência dos documentos constituintes do Edital de Concessão da Prestação Regionalizada dos Serviços Públicos de Fornecimento de Água e Esgotamento Sanitário e dos Serviços Complementares dos Municípios do Estado do Rio de Janeiro (Processo 120307/000707/2020) exigem reexame da iniciativa e assegurar o direito de participação da sociedade na construção de uma alternativa para o saneamento no estado do Rio de Janeiro.

A Covid-19 e as demais doenças emergentes e reemergentes ratificam, de forma dramática para o estado brasileiro, a necessidade do fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e de se considerar o abastecimento de água e o esgotamento sanitário como direitos humanos e, por conseguinte, sua universalização para todas as esferas da vida. Conforme preconizado como imperativo ético na Agenda 2030 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS): “Ninguém será deixado para trás”.

Vimos solicitar a participação de uma das autoras desta nota técnica para compor a mesa da terceira audiência pública do Edital de Concessão, a ser realizada em 4 de agosto de 2020. Esse requerimento se justifica pela necessidade, a um só tempo, do direito ao contraditório, à representatividade feminina e da comunidade acadêmica do Rio de Janeiro na composição da mesa.

A presente nota técnica foi elaborada por especialistas da Fiocruz e UFRJ que ora a subscrevem e expressa a experiência e os debates promovidos pelo Grupo de Trabalho Água & Saneamento, do âmbito da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção de Saúde da Fiocruz, que considera o saneamento básico nas perspectivas da justiça ambiental, dos direitos humanos, da promoção da saúde e dos bens comuns.

Autores em ordem alfabética:

  • Adriana Sotero-Martins, bióloga, Pós-Doutora em Ciências, ENSP/Fiocruz
  • Alexandre Pessoa Dias, engenheiro sanitarista, Doutor em Medicina Tropical. EPSJV/Fiocruz
  • Ana Cristina Simões Rosa, Química, Doutora em Saúde Pública e Meio Ambiente pela ENSP, CESTEH/ ENSP/ Fiocruz.
  • Ana Lucia Nogueira de Paiva Britto coordenadora do Laboratório de Estudos de Águas Urbanas do Programa de Pós Graduação em Urbanismo da UFRJ
  • Cláudia Karina Wilberg Costa, Arquiteta. Coordenadora do GT Saneamento do Comitê Piabanha/RJ
  • Clementina dos Santos Feltmann, arquiteta sanitarista, Mestre em Saúde Pública/Saneamento Ambiental, Ensp/Fiocruz.
  • Elvira Carvajal, bióloga, Pós-Doutora em Ciências, IBRAG/UERJ
  • Guilherme Franco Netto, Médico, Doutor em Epidemiologia, Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde VPAAPS/Fiocruz
  • Luis Eduardo Martin, engenheiro civil, Mestre em Saúde Pública, FUNASA/MS
  • Luísa Cardoso, engenheira ambiental. Técnica em Recursos Hídricos da AGEVAP e do GT Saneamento do Comitê Piabanha/RJ
  • Luiz Claudio Meirelles, engenheiro agrônomo, Mestre em Engenharia de Produção pela COPPE/UFRJ, CESTEH/ ENSP/ Fiocruz.
  • Marcelo Guimarães Araujo, engenheiro, Mestre em Estratégia, Mestre em Engenharia, Doutor em Planejamento, DSSA/Enps/Fiocruz.
  • Marcílio Sandro de Medeiros, geógrafo, Doutor em Direitos Humanos, Saúde Global e Políticas da Vida. Laboratório Ambiente, Saúde e Sustentabilidade/ILMD/Fiocruz.
  • Marcos Filgueiras Jorge, engenheiro agrícola, Doutor em Ciência, Tecnologia e Inovação em Agropecuária. PDCFMA/Fiocruz.
  • Maria José Salles, engenheira civil, Doutora em Saúde Pública, ENSP/Fiocruz
  • Natasha Berendonk Handan, bióloga, Mestre em Saúde Pública e Meio Ambiente, ENSP/Fiocruz
  • Norberto dos Santos Junior, sanitarista, Mestre em Saúde Pública e Meio Ambiente, ENSP/Fiocruz
  • Paulo P.R. Barrocas, oceanógrafo, doutor em oceanografia, DSSA/Ensp/Fiocruz
  • Priscila Gonçalves Moura: bióloga, Doutora em Saúde Pública e Meio Ambiente, ENSP/Fiocruz
  • Rafaela Facchetti Assumpção, engenheira civil/sanitarista, doutora em ciências da saúde, servidora do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental/ENSP/Fiocruz.
  • Rejany Ferreira dos Santos: geógrafa, mestre em Dinâmicas dos Oceanos e da Terra, Cooperação Social da Presidência/Fiocruz
  • Renata Gracie, Geógrafa, Dra. Saúde Pública IESC/UFRJ, LIS/ICICT/Fiocruz
  • Suyá Quintslr, bacharel em ecologia, doutora em planejamento urbano e regional, IPPUR/UFRJ
  • Teófilo Monteiro: Engenheiro civil, Doutor Engenharia Ambiental e Saúde Pública. FIOCRUZ, DESMA/FEN/UERJ.
  • Thiago Almeida: biólogo, Mestre em Saúde Pública e Meio Ambiente, ENSP/Fiocruz
  • Vinicius Santos Soares, economista, mestre em saúde pública, DSSA/Ensp/Fiocruz

Rio de Janeiro, 03 de agosto de 2020

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