Marcella Vieira/Editora Fiocruz
A importância da sustentabilidade de políticas públicas de saúde que permeiem todos os espaços e esferas da sociedade. Foi esse um dos principais alertas dos participantes da roda de conversa on-line Tabagismo em Tempos de Pandemia. Promovido pela Editora Fiocruz, o encontro debateu os impactos da indústria do tabaco diante da grave emergência sanitária do novo coronavírus.
Com transmissão pela VideoSaúde Distribuidora no canal oficial da Fiocruz no YouTube, o debate foi realizado no dia 7 de julho, como parte da agenda cultural da 1ª Feira Virtual das Editoras Universitárias. Um das pautas da live foi Política de Controle do Tabaco no Brasil, título que integra a lista de livros com valores diferenciados na feira, promovida pela Associação Brasileira das Editoras Universitárias (Abeu).
Vale ressaltar que o evento on-line foi realizado na mesma semana em que a Fiocruz participou da assinatura de acordo que transforma o seu Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde (Cetab), vinculado à Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), em referência da Organização Mundial da Saúde (OMS). O debate contou com a participação do público, que interagiu e fez diversos comentários e perguntas aos especialistas. Em pouco mais de 24 horas no ar, a conferência virtual já ultrapassava as mil visualizações. A roda de conversa está disponível, na íntegra, no canal da Fiocruz e pode ser visto aqui.
A mediação do evento ficou a cargo de Cristiani Vieira Machado, vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação da Fiocruz, à qual a Editora Fiocruz é vinculada. Professora e pesquisadora da Ensp/Fiocruz, Cristiani foi coorientadora de Leonardo Henriques Portes, autor da pesquisa que originou o livro. A obra foi lançada – em versões impressa e digital – pela Editora Fiocruz no dia 31 de maio, data em que é celebrado o Dia Mundial Sem Tabaco no calendário oficial da OMS.
A epidemia do tabagismo: números alarmantes
À frente do Secretariado da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco da OMS no período 2014-2020, a sanitarista Vera Luiza da Costa e Silva abriu as apresentações e falou sobre os inúmeros desafios do cargo e da implementação do organismo. Ela também mostrou números alarmantes da epidemia do tabagismo: são cerca de oito milhões de mortes anuais causadas pelo uso direto do tabaco, além de 1,2 milhão de mortes/ano pelo tabagismo passivo. “Esse impacto sanitário e econômico do tabagismo forma um pano de fundo extremamente perverso em tempos de pandemia da Covid-19”, alertou a doutora em Saúde Pública pela Ensp/Fiocruz.
Apesar de ter sido, segundo ela, negligenciado ou mal compreendido durante muito tempo, os prejuízos econômicos do tabagismo se dão das mais diversas formas, desde o nível familiar até um nível de Estado. “Esse impacto onera os cofres públicos com o tratamento dos fumantes e com o tratamento das doenças tabaco-relacionadas de uma forma muito maior do que a arrecadação dos impostos de produtos do tabaco”, destacou Vera, que defende que o tema entre definitivamente na agenda dos direitos humanos.
Ministro da Saúde no período 2007-2010 e pesquisador vinculado ao Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz, José Gomes Temporão refletiu sobre o papel exercido pelo Brasil na implementação da Convenção-Quadro e sobre o lugar da política de controle do tabaco no Sistema Único de Saúde. “Embora as iniciativas nesse campo antecedam o próprio SUS, já que começaram de maneira mais concreta nos anos 1980, é no Sistema Único que essa estratégia e que essa dimensão de saúde pública encontra o seu espaço institucional, político e organizacional que a permite ganhar potência, velocidade e qualidade”, ressaltou.
Para Temporão, não há dúvidas de que as três décadas de consolidação do controle do tabaco no país – o período 1986-2016 – devem servir como exemplo para outras políticas de Estado. “Ao longo desses 30 anos, a gente observa um exemplo de como se deve estruturar uma política pública, em que se tem o governo, as sociedades médicas e especialistas, o Judiciário, a sociedade civil (o Parlamento), as universidades, as mídias, além das relações e dinâmicas entre os contextos nacional e internacional”, enalteceu o professor titular aposentado da Ensp/Fiocruz.
Estratégias e lobby da indústria do tabaco
Médica do Instituto Nacional de Câncer (Inca), Tânia Maria Cavalcante falou sobre os avanços do controle do tabaco no país e sobre os esforços dos diversos profissionais e especialistas envolvidos nesse processo, incluindo a sociedade civil organizada, além de secretarias municipais e estaduais de saúde. Todo esse envolvimento é, segundo ela, uma grande riqueza da política.
Ainda assim, a representante da Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (Conicq/Inca) deixou claro que ainda há muito a ser feito. “Avançamos e temos resultados positivos, somos reconhecidos internacionalmente, mas temos grandes desafios. Se a gente olhar para trás, cada medida dessas que foi implementada levou muito tempo. Um exemplo é a lei que proíbe fumar em locais fechados: levamos sete anos! Todo esse tempo significa muitas mortes”, observou.
Segundo ela, conflitos e tensões desse tipo são resultados de uma política de enfrentamento que sofre forte reação da indústria do tabaco e seus representantes. Apesar da queda significativa na prevalência do tabagismo no país nos últimos anos, ainda há cerca de 20 milhões de fumantes no país. “Quase duas vezes a população de Portugal!”, enfatizou Tânia Cavalcante.
A médica, que também já passou pela Ensp/Fiocruz no mestrado em Saúde Pública, denunciou o desequilíbrio nas relações entre a indústria do tabaco e a sociedade. “Não é justo que empresas que ganham tanto dinheiro às custas dos pulmões e mortes das pessoas continuem pagando tão poucos impostos”, afirmou.
Quem também ressaltou as manobras das empresas fumageiras foi Silvana Rubano Turci, pesquisadora do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde (Cetab) da Ensp/Fiocruz. Segundo ela, ações da indústria do tabaco capturam os processos políticos, intimidam governos, enfraquecem e depreciam pesquisas, confundindo a ciência e a opinião pública.
Um exemplo recente foi uma notícia alardeada por empresas do setor de que nicotina poderia ser benéfica para os pacientes com Covid-19. Rapidamente a comunidade científica internacional reagiu e a professora destacou que tal benefício seria impossível vindo de um produto que mata tantas pessoas. “Temos que ter muito cuidado com uma indústria que usa as ações de responsabilidade social corporativa para fazer o seu lobby em tempos de Covid-19”, alertou.
Para isso, Silvana pontuou o trabalho do Observatório sobre as Estratégias da Indústria do Tabaco no Brasil, grupo vinculado ao Cetab e coordenado por ela. Logo no início da pandemia, o Observatório inaugurou em seu site uma seção intitulada “Indústria do Tabaco e Covid-19”, reunindo arquivos, notícias e documentos que relacionam lobbies e estratégias das empresas fumageiras diante da crise sanitária.
A pesquisadora explicou que a criação do grupo, há quatro anos, integra as ações de recomendação da Convenção-Quadro da OMS de que “os países devem conter as atividades da indústria, que está sempre pronta para atrapalhar e comprometer as políticas públicas de saúde”.
Tabaco e Covid-19: a relevância do SUS e da ciência
Autor de Política de Controle do Tabaco no Brasil, Leonardo Henriques Portes encerrou as apresentações destacando os eixos presentes em seu trabalho de doutorado – desenvolvida na Ensp/Fiocruz e ganhadora do Prêmio Capes de Tese 2018 – que deu origem ao livro. O pesquisador destacou a trajetória de referência do país no controle do tabaco, que contempla um forte arcabouço legal-normativo, além da forte atuação da sociedade civil. “O Brasil é vanguarda. Desde a década de 1980, nós começamos a fazer diplomacia internacional nesse sentido”, enalteceu.
De acordo com Portes, são muitas as lições da política de controle do tabaco para o combate ao novo coronavírus. Um dos destaques levantados por ele é o fato de que, ao longo de toda o seu processo de implementação e consolidação, a política se baseou sempre na ciência. Assim, o controle do tabagismo no país se deu, segundo Leonardo, de forma excelente, tendo o Ministério da Saúde como principal liderança, além de fortes destaques para o Inca e para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), criada em 1999 como parte desse contexto.
“A política de controle do tabaco deixa a lição da importância de evidências científicas, e mostra que o Estado tem que ter uma base de proteção social. Assim como qualquer outra política, e isso inclui o combate à pandemia (da Covid-19), ela deve ser vista sob a ótica da sustentabilidade. Não adianta só tomar medidas emergenciais”, frisou Leonardo. O autor do livro é profissional do SUS e está na linha de frente do enfrentamento ao novo coronavírus: ele é fisioterapeuta do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (HUCFF/UFRJ) e da Policlínica Piquet Carneiro (PPC), vinculada à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Nesta última, porém, ele vem reforçando a equipe do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe) diante da emergência dos últimos meses.
Ao encerrar as exposições e enaltecer a importância de cada um dos participantes nas políticas e pesquisas relacionadas ao controle do tabaco no país, Cristiani Vieira Machado ressaltou também o papel do Brasil na construção e na ratificação da Convenção-Quadro da OMS, destacando a dinâmica relação entre a diplomacia e as políticas nacionais e internacionais. Para a médica sanitarista, os diálogos intersetoriais, os diálogos entre as esferas de governo e as interações com a sociedade civil são elementos fundamentais e desafiadores diante dos enormes esforços empreendidos no combate à Covid-19.
A valorização da ciência e da saúde pública são, em meio a todo esse contexto, essenciais para que possamos seguir na luta contra a pandemia. “Temos que continuar juntos e fortes não só na defesa da política de controle do tabaco, uma das mais bem-sucedidas na trajetória das políticas públicas brasileiras, mas também na defesa do Sistema Único de Saúde. A pandemia está mostrando a relevância do nosso SUS, além da relevância das políticas de ciência e tecnologia. A ciência é o que nos traz respostas para dar conta de uma série de problemas”, finalizou a vice-presidente da Fiocruz.
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