Conselho de Direitos Humanos da ONU: mais Estado e equidade para enfrentar a pandemia

SANTIAGO ALCAZAR E PAULO BUSS

Frente à tragédia humanitária e a ameaça aos direitos humanos provocadas pela agressiva propagação da pandemia de Covid-19, a 44ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou resolução em que reconhece o papel central do Estado no enfrentamento da pandemia com equidade, bem como outras resoluções que consideramos bastante relacionadas com essa orientação. Mas antes de comentá-las, vejamos o contexto em que se coloca hoje essa instância multilateral da ONU.

O Conselho de Direitos Humanos é um dos órgãos subsidiários da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU). Foi criado em 2006, por decisão da AGNU, para substituir a antiga Comissão de Direitos Humanos. Os nomes são parecidos e podem criar confusão. Com vistas a desanuviar eventuais dúvidas seria proveitoso relatar, ainda que brevemente, a história da Comissão, sua estrutura e dificuldades e, finalmente sua substituição pelo Conselho.

Leia também, dos mesmos autores: Conselho Econômico e Social da ONU (Ecosoc) de 2020: esperança ou fracasso?

A Carta constitutiva das Nações Unidas estabelece os seus seis órgãos principais, como segue: Assembleia Geral (AGNU), Conselho de Segurança, Conselho Econômico e Social (Ecosoc), Conselho de Tutela, Corte Internacional de Justiça e Secretariado. Dessa lista, somente o Conselho de Tutela teve suspensas suas atividades a partir de 1994, quando Palau, a última colônia então existente, obteve sua independência.

Uma das funções do Ecosoc, conforme estabelecido pelo artigo 62 da Carta, é a elaboração de recomendações para a promoção, o respeito e a observância dos direitos humanos. O artigo 69, relativo aos procedimentos do Conselho, habilita àquele órgão estabelecer comissões econômicas, sociais, bem como para a promoção de direitos humanos.

Em 1946, o Ecosoc estabeleceu a Comissão de Direitos Humanos como um de seus órgãos funcionais. Inicialmente, a Comissão tinha como principal objetivo a elaboração do texto da Declaração de Direitos Humanos, finalmente concluída e adotada em 1948 com 48 votos a favor, nenhum voto contrário e oito abstenções (África do Sul, Arábia Saudita, bloco soviético, Iugoslávia). O resultado daquela votação sinalizaria a politização do tema no clima da Guerra Fria e a consequente polarização.

Após a adoção da Declaração – que é apenas isso, uma declaração e não um tratado –, a Comissão procurou ampliar o escopo dos direitos humanos para os campos dos direitos econômicos, sociais e culturais (objetos do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), bem como para aqueles dos direitos civis e políticos (objeto do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos) e mais uma plêiade de outros direitos, de que são exemplo, os da mulher, da criança e de pessoas com deficiências. Se a Declaração dos Direitos Humanos já havia provocado uma polarização, a ampliação do escopo da Comissão iria aumentar à medida que a agenda das Nações Unidas ia se tornando mais complexa e crescia o número de Estados-membros com o estertor do sistema colonial.

As reuniões da Comissão aconteciam sob grande tensão política. As críticas à engrenagem paralisante da Comissão foram se avolumando durante todo o período da Guerra Fria. Quando esta acabou, com a dissolução da União Soviética, surgiram outras tensões com os mesmos efeitos. Uma das razões para a paralisia e falta de eficácia da Comissão era a sua dependência umbilical do Ecosoc. Este, com efeito, não é um órgão político, cabendo esse papel à AGNU que reúne a totalidade dos Estados-membros.

Em 2006, a AGNU decidiu adotar resolução que efetivamente substitui a Comissão pelo Conselho, que estaria doravante subordinado àquele órgão de máxima representatividade. O Conselho tem 47 membros, eleitos pela AGNU, e não pelo Ecosoc, como era o caso para a Comissão. O grupo de países latino-americanos atualmente ocupando assentos no Conselho – com respectivos anos de vencimento dos respectivos mandatos – são Chile, México e Peru (2020), Argentina e Uruguai (2021) e Brasil e Venezuela (2022).

Reúne-se em três sessões anuais. Neste ano, a primeira, a 43ª sessão, realizou-se de 24 de fevereiro a 23 março; e a segunda, a 44ª sessão, de 30 de junho a 17 de julho. A terceira sessão, a 45ª, será realizada de 14 de setembro a 6 de outubro. Este ano, por conta da pandemia, a 43ª sessão foi interrompida em 13 de março, reiniciada em 15 de junho e concluída em 23 do mesmo mês.

No penúltimo dia da 43ª sessão, o Grupo Africano solicitou reunião de emergência para debater a violência policial que havia resultado na morte de George Floyd. Ao final da reunião de emergência, foiadotada a resolução A/HRC/43/L.50,[1]referente à promoção e proteção de africanos e descendentes de africanos contra a violência policial (The promotion and protection of human rights and fundamental freedoms of Africans and people of African descent against excessive use of force and other human rights violations by law enforcement officers). A resolução, adotada em plena pandemia da Covid-19 relaciona-se a ela pela onda de protestos contra a morte de George Floyd, naturalmente, mas também pela resposta da administração Trump contra os manifestantes, bem como pela falta de resposta daquela administração à própria pandemia.

A divulgação de números impressionantes de infectados e mortos pela Covid-19, ascendeu a indignação de importantes segmentos da população norte-americana diante da indiferença e falta de empatia do governo com a sorte de seus cidadãos, negros, brancos, mulatos, asiáticos, índios e mestiços. Nesse contexto, a resolução do Conselho pode ser interpretada como uma reação contra a violência de um governo contra a sua própria população.

A 44ª sessão seria mais enfática com relação à Covid-19. No dia 17 de julho, a sessão encerrou-se com a adoção da Resolução A/HCR/44.23/Rev.1[2],[3], intitulada O papel central do Estado em responder a pandemias e outras emergências de saúde, bem como as consequências socioeconômicas resultantes em apoiar o desenvolvimento sustentável e a realização de todos os direitos humanos (The central role of the State in respondingtopandemics and otherhealthemergencies, and the socioeconomicconsequencesthereof in advancingsustainabledevelopment and the realizationofallhumanrights). Há, evidentemente, uma correlação entre aquela resolução da 43ª sessão e essa, da 44ª sessão. Nas duas, o Estado é responsabilizado pela violência – física contra os negros, no primeiro caso, física também no segundo –, pelo número de mortos e infectados por falta de planos de saída e de desinvestimentos para o desenvolvimento sustentável e a defesa de todos os direitos humanos.

A resolução sobre o papel do Estado nas pandemias é ressaltado como um reconhecimento que é preciso resgatar das profundezas do limbo a que o destinaram as políticas em favor dos mercados

É preciso registrar que a 44ª sessão e as sessões 2020 do Ecosoc encerram suas atividades na mesma sexta-feira, dia 17 de julho. Assim como a declaração ministerial do Ecosoc (ver aqui) reunia elementos de esperança e de frustração com os esforços para a implementação dos ODSs, que teriam de ser redobrados com os impactos devastadores da Covid-19, a resolução sobre o papel do Estado nas pandemias é ressaltado como um reconhecimento que é preciso resgatar das profundezas do limbo a que o destinaram as políticas em favor dos mercados.

Por outro lado, a resolução é adotada porque os Estados-membros mostraram-se “profundamente preocupados com a morbimortalidade causada pela pandemia do Covid-19, os efeitos negativos no gozo de todos os direitos humanos, incluindo a saúde física e mental e o bem-estar social, as repercussões negativas na economia e na sociedade, e o consequente aumento das desigualdades dentro e entre países”.

Reafirma a importância da cooperação internacional e pede prioridade global pra o acesso universal, oportuno e equitativo a todos os produtos e tecnologias de saúde essenciais, seguras, efetivas e acessíveis de qualidade, incluindo seus componentes e precursores, necessários à luta contra a pandemia 19, e que os obstáculos injustificados existentes sejam removidos com urgência.

Também é animador saber que a 44ª sessão elegeu a médica sul-africana, dra.Tlaleng Mofokeng, como Relatora Especial das Nações Unidas (United Nations Special Rapporteur) para o direito de todos ao mais alto padrão de saúde física e mental[4]. A dra.Mofokeng[5] terá agora a responsabilidade de instrumentalizar o direito à saúde no âmbito do papel do Estado e da equidade durante as pandemias, o que significa que terá de haver também um sólido trabalho para garantir a resiliência dos sistemas de saúde durante os períodos “pré-pandêmicos”.

Mais um corpo multilateral das Nações Unidas manifesta-se em favor da equidade em saúde, como já o tinham feito a Assembleia Geral, a OMS e o ECOSOC. Resta-nos monitorar se os países mais poderosos da terra acompanharão estas resoluções multilaterais (ainda que não vinculantes) em prol da tão esperada equidade em saúde, capaz de resgatar a imensa dívida social e sanitária da comunidade global com os países mais pobres e as populações pobres de todos os países.

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